Sob a pressão das telas: docentes sofrem efeitos do isolamento social, sobrecarga do ensino remoto e mudanças na rotina

Publicado em

Radis/Fiocruz, 15/10/2020: Maria da Guia diz que a solidão começa a pesar, pois sente muita falta da alegria e do contato no ambiente de trabalho. Para Arthur, desde que a pandemia começou, ansiedade, frustração e medo fizeram a vida virar uma montanha-russa de emoções. Josiley está muito ansioso, dorme mal e tem dores no corpo provocadas pela sobrecarga e tensão do trabalho. A esses sinais podem ainda ser somados muitos outros, como cansaço, falta de energia, angústia, ganho de peso e estresse, que surgiram ou foram agravados desde o início da pandemia de covid-19. Maria da Guia, Arthur e Josiley têm em comum a mesma escolha profissional. Ela e eles fazem parte de uma categoria afetada pela pandemia por estar na linha de frente do processo de reorganização escolar: são professores de diferentes níveis da educação, que ensinam em escolas públicas e privadas, e que viram a saúde ser impactada por mudanças na rotina e na sobrecarga de trabalho no período de distanciamento social.

De uma hora para outra, a suspensão de aulas presenciais aumentou a demanda de trabalho dos professores, exigindo adaptação no método de ensino e readequação da vida doméstica. Para alguns, a mudança foi pior e gerou desgaste devido à falta de familiaridade com as novas tecnologias. “Dentro da educação pública temos um impacto forte devido à falta de condições adequadas de trabalho, o que historicamente leva um terço de nossa categoria a ser acometida de doenças profissionais, como a síndrome de burnout. Com a pandemia, o quadro foi agravado”, diz Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação (CNTE). 

Heleno cita dados da pesquisa “Trabalho Docente em Tempos de Pandemia”, realizada pela CNTE, em parceria com o Grupo de Estudos sobre Política Educacional e Trabalho Docente da Universidade Federal de Minas Gerais (Gestrado/UFMG), e divulgada em julho, que mostrou que mais da metade dos participantes (53,6%) não recebeu capacitação pelas redes de ensino para atuar com o ensino remoto, o que causa angústia e tensão, prejudicando o trabalho de ensinar. Para completar, apenas três a cada 10 professores da educação básica nas redes públicas de ensino no Brasil contam com recursos tecnológicos necessários à realização das atividades. O levantamento revelou ainda que há diferença significativa entre os que tiveram acesso à formação em relação à rede à qual estão vinculados — se municipal ou estadual.

“Não se pode se tornar um youtuber ou um ser bom de câmera sem um exercício, sem uma prática, sem uma formação. E mais da metade dos professores não possuem equipamento exclusivo para desenvolver as atividades do processo de ensino e aprendizagem”, afirma Heleno. A sensação dos professores é que, mesmo que os alunos tenham diminuído a participação nas aulas remotas, os professores sentiram uma intensificação no tempo de seu trabalho. “Já que o poder público não garantiu o processo de formação, muitos tiveram que correr atrás dela. Isso tudo impacta o processo de ensino e aprendizagem”, acrescenta [leia a entrevista completa aqui]

O adoecimento é também constatado por Rosilene Corrêa, diretora do Sindicato dos Professores de Brasília. Segundo ela, o ambiente vivido pelos educadores é de muito estresse. “O quadro se complica com a ameaça de retorno. Até porque o professor vai ter que se dividir entre aulas presenciais e remotas e não foi apresentado como o sistema híbrido vai ser realizado”, diz a diretora. Radis conversou por telefone com Maria da Guia, Arthur e Josiley para saber o quanto a vida desses educadores foi alterada pela pandemia de covid-19 e o que eles contam sobre suas condições de saúde e de trabalho.

NA EDUCAÇÃO INFANTIL: MARIA DA GUIA E O CELULAR

Em quase 28 anos de magistério, Maria da Guia Nascimento Ribeiro nunca tinha vivido uma situação como a de agora. Professora da educação infantil, ela dá aula para crianças de cinco anos na Escola Classe Córrego Barreiro, em Ponte Alta do Gama, a 35 quilômetros de Brasília. Antes da pandemia, a maior parte do seu dia era passado na escola, com uma jornada em que planejava aulas e participava de cursos, durante a manhã, e ministrava aulas para as crianças, no período da tarde. “Eram cinco horas de aulas bem mais dinâmicas e interessantes para elas do que as de agora”, afirma. Por estar situada na zona rural e atender alunos com esse perfil, a escola onde Maria da Guia atua há seis anos tem uma boa área externa e grande relação com a biodiversidade. “Todo o projeto é focado na sustentabilidade e temos muito espaço para fazer as atividades com os alunos”, descreve. 

Além das salas de aula, há horta, minhocário e área para reflorestamento, o que possibilita o desenvolvimento das atividades presenciais. E foi esse espaço que não só os alunos, mas também Maria da Guia perdeu desde que a escola fechou em março. “A gente perdeu o contato com as crianças e com os outros colegas de trabalho para trocar ideias e até as mesmas angústias e perdemos todas as atividades externas”, lamenta. Por tudo isso, a educadora considera que a adaptação a esse novo modelo de trabalho foi bem difícil, especialmente porque vários estudantes ainda não estão participando das atividades. Com 15 alunos em sala, ela explica que são inúmeras as dificuldades a serem superadas, que dependem inclusive da localização da casa do aluno. “Para falar comigo, a mãe de uma aluna tem que andar cerca de 10 minutos até alcançar um ponto mais alto dentro da sua chácara e ver as orientações de aulas. Isso é algo que eu não posso resolver e é bem frustrante”, confessa.

O problema não é apenas tecnológico, já que os pequenos alunos de Maria da Guia estão em processo de alfabetização e seus pais têm baixa escolaridade, o que dificulta um pouco a conversa, mediada pelo WhatsApp ou telefone. “As famílias são bem carentes. Não possuem computador, muitos têm aparelhos de celular ruins e a internet também é ruim ou não existe. Os pais não conseguem e não sabem como acessar a plataforma da Secretaria de Educação. Em uma chamada de vídeo, consegui falar com apenas seis alunos. Nove ficaram excluídos da atividade e não tenho como resolver isso. É uma preocupação constante”, diz ela. Para driblar as dificuldades e ampliar o acesso, mensalmente os pais vão à escola pegar um envelope com as atividades impressas.

Maria da Guia mora sozinha e tem bastante espaço para trabalhar em casa, mas diz que se sente muito pressionada porque pensa nas crianças ausentes. “Trabalhar em casa dificultou muito a minha vida. Eu não tenho interferência de outras pessoas, mas me sinto pressionada por não saber desse pequeno grupo”, observa. Segundo ela, a abstenção de um grupo de alunos é um problema relatado também pelos outros professores, que agora se veem às voltas com relatórios sobre o desenvolvimento e a aprendizagem para avaliar os estudantes. “Uma das minhas grandes angústias é como avaliar a aprendizagem das crianças da educação infantil com atividades remotas se elas sequer acessam a plataforma de ensino”, diz. Outra angústia de Maria da Guia foi vivida em março, com a formação e o treinamento para usar a plataforma. “Foi bem corrido. Hoje vejo que há muitos colegas com mais dificuldades que eu, até porque não tinham muita habilidade para lidar com essas ferramentas da internet”, salienta.

A saúde logo cobrou a conta. Veio a ansiedade e a dificuldade para dormir e a covid-19 gerou o medo da exposição. “Estou bem ansiosa e preocupada. Eu moro em um prédio e já houve vários casos da doença”, afirma a professora que teme também pelos pais idosos, que visita com certa frequência. “Saio apenas para ir ao supermercado e levar mantimentos”, relata. O aumento das dores de cabeça também não tardou a vir. E o culpado, para Maria da Guia, é o tempo diário que ela passa online, no celular e no computador. “Fico o tempo todo no celular orientando famílias que têm acesso à internet e horas elaborando atividades, em reuniões online e recebendo treinamento”, diz. Praticante de ioga e meditação e fazendo psicanálise, Maria da Guia intensificou essas terapias quando viu que sua saúde mental estava piorando. “Isso é o que tem me segurado. É o jeito. Eu sei que é muito melhor trabalhar na escola e, por enquanto, tento levar da melhor maneira possível”, observa. 

NO ENSINO FUNDAMENTAL: ARTHUR E A BICICLETA

“Olha, estou trabalhando bem mais, com muita tensão e ainda ouvi que tem professor que está recebendo para ficar em casa”, desabafou Arthur Cabral, que ensina na Escola Estadual de Referência Deputado Oscar Carneiro, em Camaragibe, município a 10 quilômetros do Recife. Com a pandemia, sua antiga rotina de aulas que iniciava às 7 horas e se estendia ao longo do dia agora começa uma hora mais tarde, quando os professores encaminham as atividades do dia para os alunos pelo computador, e não tem hora para acabar. “É preciso estar disponível para esclarecer dúvidas a qualquer momento. Não basta apenas abrir o computador como muita gente pensa”, observa. “Na semana, temos aulas ao vivo e há um tempo para esclarecer dúvidas e conversar para saber como os estudantes estão. Há reuniões on-line e formações. Tivemos que aprender muita coisa em pouco tempo”, diz. 

Antes da pandemia, Arthur trabalhava em casa complementando o horário escolar. Desde que a escola invadiu a vida doméstica, um cantinho da sala de sua casa no Recife foi adaptada para receber uma estação de trabalho. “Depois de produzir os slides, eu gravo a aula, carrego o arquivo e envio por e-mail ou coloco no sistema. O processo pode demorar algumas horas. A ansiedade vai depender da rapidez da internet”, salienta. Junto com a esposa Catarina, ele se divide nos cuidados com a filha Antonia, de 2 anos. “Depois que ela dorme, eu preparo o conteúdo para gravar e estudar para o próximo dia. E posso ficar até onze da noite online, trabalhando”.

Com tanta pressão, a saúde foi afetada e a ansiedade tomou o seu lugar. Em abril, ele, que se considera uma pessoa tranquila, notou que o estresse estava alto e vivia com os “nervos à flor da pele”. Nessa mistura de vida profissional e pessoal, nem a família ficou de fora. “Chega um momento em que a convivência se torna difícil. Eu ficava com pelo menos 200 alunos por dia e, de repente, passei a ver duas pessoas durante vários meses”. A ajuda externa veio em forma de conversa. Desde abril, a escola promove reuniões semanais dos docentes com uma psicóloga. “Esse encontro redefiniu o sentido da vida e vi que não era apenas eu que passava por isso. É um desafogo para quem está mal”, analisa. 

Para Arthur, a escola é uma relação de afeto e proximidade e desde o início ficou estranho o contato feito por meio de telas. “É frustrante um professor ter a sensação de não estar atingindo todo mundo”, contou, lembrando de 20 alunos ausentes de suas aulas. Logo veio a resposta: a escola em que leciona fica em uma comunidade de baixa renda, com famílias em situação de vulnerabilidade. Nas casas dos alunos, faltava celular e internet e, muitas vezes, comida também.

Resolvido a incluí-los de alguma forma, Arthur imprimiu as atividades de Biologia, disciplina que leciona para estudantes dos 6º e 7º anos do ensino fundamental, e juntou resumos de outros professores. Todas as sextas-feiras, ele entrega envelopes para que esses estudantes acessem os conteúdos. “Encontrei famílias que dividiam um celular para até cinco crianças, todas com aulas remotas, sem ter como estudar. Vi alunos usando a senha da internet do vizinho. Isso é muito triste”, desabafou. A história do professor que percorre mais de sete quilômetros de bicicleta para ajudar alunos sem acesso às aulas ganhou mundo e foi destaque na imprensa. Depois disso, ele recebeu ajuda e doações que possibilitaram que mais estudantes fossem incluídos no ensino remoto. A pedalada entrou em sua nova rotina. “De certa forma me deu ânimo, mas passei por muitas incertezas. É uma montanha-russa de emoções em que a gente se cobra mais e se sente incapaz”, observa.

Agora, ele assegura que já se acostumou à rotina e às variações de sentimentos. Em setembro, Arthur disse à Radis que estava bem. Depois da ansiedade e frustração, contou que vivia a terceira fase do processo, que é a do medo da volta. “São 40 estudantes em uma sala que não tem ventilação adequada. No papel é bonito, mas na escola a realidade é outra. Como vai funcionar? Quem tem grupo de risco em casa vai levar a doença?”, questiona, dizendo que, este ano, por decisão familiar, a pequena Antonia não voltará a frequentar a creche. 

NA UNIVERSIDADE: JOSILEY E O LAPTOP

Inúmeros são os problemas sentidos pelo professor Josiley Carrijo Rafael desde que entrou em isolamento, em março. Essa mudança drástica de sua vida de professor do Departamento de Serviço Social e do Mestrado em Política Social da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), em Cuiabá, mexeu de forma profunda com sua saúde. “Estou há mais de 150 dias em isolamento total. Moro sozinho e isso rebateu diretamente na questão da minha saúde mental”, disse à Radis. Com o sono alterado, o professor teve que aumentar a medicação regular de uso controlado. “As atividades se intensificaram de forma inexplicável. Para tudo tem que ter agenda. A gente vive o tempo inteiro em função de reuniões e do computador”, salienta. 

Josiley observa que seu laptop mostra não só seu rosto ou arquivos durante reuniões de trabalho. Para ele, a tela de cristal líquido exibe muito mais que isso. Assim que as aulas presenciais foram suspensas, o professor passou a trabalhar no quarto de casa, numa estação de trabalho. Não deu certo por falta de rede wifi e a solução foi transferir seu notebook para a mesa do apartamento em que mora sozinho. E é ali na sala de estar, em frente ao laptop, que ele passa boa parte do dia e muitas vezes da noite. “O meu espaço doméstico foi completamente invadido, devastado até. No formato online, eu recebo as pessoas dentro de casa. Foi e está sendo bastante complicado”, revela. 

Sem atividades de ensino, o professor continua fazendo trabalho de pesquisa acadêmica e de extensão. Josiley é coordenador do Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde) e 2020 é ano de avaliação quadrienal de programas de pós-graduação, o que já faz com que seja um ano de sobrecarga para os professores universitários. “É quase consensual que o trabalho aumentou, que está exaustivo”, comenta. Josiley conta que está com problemas na coluna devido ao esforço empreendido e à falta de atividade física e sente dores no braço, pois a mesa da sala não tem altura adequada. A esses fatores juntam-se um notebook precisando de revisão, o que aumentou a ansiedade e prejudicou sua relação com o trabalho. “Uso muito as plataformas de reunião e meu equipamento não suporta. Moro numa região bem localizada, com uma internet que oscila. Para completar, há muito barulho externo, dificultando o trabalho, o que impede minha concentração”, observa. 

Josiley sai de casa apenas para ir ao mercado e à farmácia e sente falta do contato humano nessa rotina que mistura vida e trabalho. “Mais de uma vez me peguei desenvolvendo tarefas simultâneas para dar conta. Fiz refeições conversando e lavei louça em algumas reuniões sem vídeo”, diz. As atividades domésticas também se ampliaram fazendo com que, como tantos, ele assumisse uma dupla jornada. “Tenho que dar conta das coisas da casa para ter um ambiente minimamente saudável, e também ter energia para dar respostas para aquele mundo de coisas que vão surgindo”, afirma. E, no meio de tudo isso, ele diz que imperam as novas tecnologias que invadem a vida em qualquer horário. “Também fico um tempo respondendo a mensagens de WhatsApp e, como estamos sem contato presencial, notei que demando pessoas em horários não convencionais, algo que não fazia antes”, diz. 

Para Josiley, o isolamento fez com que voltasse ao passado, ao relembrar outra época de muita pressão, que levou à ansiedade e alteração do sono, durante o seu doutorado. Agora, confessa que se viu diante de uma rotina distinta da que ele estabeleceu a vida inteira. “Tenho 41 anos, sempre trabalhei envolvido com ensino e sala de aula, participei de reuniões, comissões, estava envolvido com projetos de extensão e supervisão de estágio. Tudo está suspenso e estou trancado dentro de casa sozinho”, observa. Para ele, sua condição é mais perversa, por ser solteiro e homossexual numa cidade com “ranço forte do coronelismo, patriarcado e machismo”. “As minhas redes de articulação possíveis acabam sendo mais limitadas”, considera.

Mesmo se sentindo perdido, ele encontra uma luz nas quintas-feiras, pela manhã, momento em que atua como multiplicador do curso do PET-Saúde em que fala para cerca de 60 pessoas. “Nesse dia, eu percebo que a minha respiração é mais entusiasmada, apesar de tudo é possível enxergar uma luz. Os poucos momentos de troca, que não são apenas burocráticas ou administrativas, acabam sendo um suspiro diante desse cenário”, pondera.

Fonte: Liseane Morosini, para Radis/Fiocruz, em 15 de outubro de 2020. Disponível em <https://radis.ensp.fiocruz.br/index.php/home/reportagem/sob-a-pressao-das-telas>. Foto: Radis/Fiocruz.