AUTOGESTÃO

Autores/as: FERNANDO BOMFIM MARIANA

Processo de transformação das estruturas heterônomas de governo em dinâmicas autoinstituintes da sociedade, a partir de relações sociais anti-hierárquicas, antiestatais e anticapitalistas. Autogestão é um conceito político, muito além de um conceito técnico voltado para um novo modo de administração ou gestão. O conceito se fortalece através das lutas autônomas e autogeridas de trabalhadores no final do século XIX até meados do século XX (Comuna de Paris, greves na Rússia, em 1905; insurreição em Kronstadt na defesa dos sovietes; Guerra Civil Espanhola; Conselhos na Hungria em 1956; Sindicato Solidarnösc na Polônia, em 1980; e outras) e se complexifica nos movimentos populares contemporâneos em prol da liberdade e da emancipação social (coletivos libertários, anarquistas, movimentos indígenas e de povos originários, trabalhadores rurais sem-terra, trabalhadores urbanos desempregados ou sem-teto e outros), cujas renovadas formas de luta e de gestão da sociedade apresentam alternativas plausíveis para o autogoverno. Etimologicamente, o prefixo “auto” incide na capacidade de o ser humano controlar sua vida social. As bases organizacionais da autogestão residem nas assembleias descentralizadas, instâncias máximas de decisão, onde debate-se, reflete-se e decide-se sobre tudo o que se refere ao cotidiano da vida pública. A representação se dá sem delegação de poder, o que significa dizer que o representante não decide, mas é o porta-voz das decisões coletivas. Os Conselhos de autogestão reúnem representantes de diversas assembleias. Nas associações de moradores, a autogestão incide nas possibilidades de controle direto da comunidade sobre seu próprio território, eliminando formas hierárquicas e opressivas (notadamente o patriarcado), e imprimindo relações sociais harmoniosas com o meio ambiente. No movimento estudantil, a autogestão recria a natureza e a forma da luta, propiciando autonomia dos estudantes frente a entidades partidarizadas e burocratizadas (MARIANA, 1992). Nos movimentos de trabalhadores, a autogestão favorece espaços de lutas sociais fora dos sindicatos, sejam ocupações, comissões de fábricas ou instâncias autônomas similares – os gestores sindicais perdem completamente sua função, e as assembleias gerais substituem qualquer forma de representação, rejeitando hierarquias internas ou externas. Nas unidades de produção econômica, os trabalhadores se reapropriam do espaço e do tempo, redefinindo-os, destruindo as hierarquias, eliminando a dualidade dirigentes/dirigidos, a divisão entre trabalho manual e intelectual (BRUNO, 1990, p. 32). O processo de instituição autônoma da sociedade (CASTORIADIS, 1982) consubstancializa-se na federação das esferas sociais autogeridas, objetivando a expansão do movimento e a superação das estruturas políticas do Estado e da economia capitalista. Onde houver autogestão não pode haver exército, nem polícia, nem Estado (INTERNACIONAL SITUACIONISTA, 1997, p. 199), e a crítica da mercadorização da vida humana sob todos seus aspectos (trabalho, lazer, arte e cultura, amor, sonhos) ocupará centralidade na produção do conhecimento intrínseco a tal movimento, evidenciando que o direito de viver apaixonadamente passa pela liquidação total do sistema espetacular-mercantil (RATGEB, 1974, p. 83). A criação autogestionária possui infinita diversidade nas suas dimensões sócio-históricas e, ao apontar para possibilidades de superação da condição humana em relação à exploração do ser humano pelo ser humano, possibilita as pré-condições políticas para a construção de novas civilizações. AUTOGESTÃO EDUCACIONAL é a gestão autônoma da educação decorrente do cotidiano de uma vida coletiva emancipada socialmente. Não inclui a escola enquanto instituição imprescindível a tal processo, uma vez que as habilidades necessárias às futuras gerações para a reprodução social podem ser apreendidas naquele cotidiano de diversas formas. A autogestão educacional é tradicionalmente praticada por povos e populações originárias que se encontram em elevado grau de autonomia social. Também possui contornos específicos dentro dos contextos históricos das lutas autogestionárias. Na Comuna de Paris, revolucionários como Louis-Eugène Varlin compreendiam a própria luta como uma pedagogia. Gerir as lutas era, na sua opinião, o único treino para gerir, mais tarde, a sociedade e a economia (BERNARDO, 2000, p. 94). Durante a Guerra Civil Espanhola, o Conselho da Escola Nova Unificada refletiu os contornos autogestionários da luta anarquista, incorporando também os princípios da pedagogia libertária – assentada no autodidatismo, nas relações pedagógicas humanizadoras, na abolição das notas e provas, no ensino antiautoritário e na crítica radical ao sistema capitalista, além de outras características específicas a cada conjuntura histórica. No Brasil, as Escolas Modernas, em São Paulo, e a Universidade Popular, no Rio de Janeiro, são exemplos de atividades educativas auto-organizadas no início do século pelo movimento operário anarquista (MORAES, 2006). Atualmente, a autogestão educacional é realizada no seio de movimentos sociais populares sob suas mais diversas configurações, traduzindo-se enquanto práticas pedagógicas fundamentais nas abordagens da política e da gestão na educação. As vivências de lutas autogestionárias emolduram as bases de pedagogias de levante (MARIANA, 2003), cujos fundamentos filosófico-educacionais se alicerçam na preparação para a vida social livre e emancipada. Essa força individual, bem como a sua aplicação ao processo social, pode ser compreendida como ação direta (BOOKCHIN, 1998). Ao mesmo tempo, a constituição de espaços educativos alternativos, ou mesmo de escolas experimentais que inventam modos inovadores de afastar a disciplina e o biopoder das estruturas escolares vigentes, auxiliam nas heterotopias educacionais (GALLO, 2009). No meio universitário, a criação de canais de participação real de professores, estudantes e funcionários nas estruturas de poder obstruiriam a esclerose burocrática da instituição, devolvendo à universidade um sentido de existência através da autogestão pedagógica (TRAGTENBERG, 2004).

Bibliografia

BERNARDO, J. Transnacionalização do capital e fragmentação dos trabalhadores. São Paulo: Boitempo Editorial, 2000.

BRUNO, L. O que é autonomia operária. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.

BOOKCHIN, M. Textos Dispersos, Lisboa: SOCIUS, 1998.

CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982.

GALLO, S. Heterotopias no espaço educacional: repensando o poder nas relações pedagógicas. In: MARTINS, A.M.S.; BONATO, N.M.C. (Orgs.) Trajetórias históricas da educação. Rio de Janeiro: Rovelle, 2009.

INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Antologia. Lisboa: Antígona, 1997.

MARIANA, F.B. Democracia, autogestão e movimento estudantil. Temporaes: democracia e autogestão. São Paulo, Humanitas, v. 1, p. 171-182, 1992.

_______. Autonomia, cooperativismo e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): contribuições educativas para autogestão e pedagogias de levante.2003. 126f. Dissertação (mestrado) – Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo, São Paulo.

MORAES, J.D. Pensamento educacional anarquista no Brasil: uma introdução histórica. Educação libertária, São Paulo, n. 1, p. 101-106, 2006.

RATGEB. Da greve selvagem a autogestão generalizada. Lisboa: Assírio & Alvim, 1974.

TRAGTENBERG, M. Sobre educação, política e sindicalismo. São Paulo: Editora UNESP, 2004.