AUTONOMIA PROFISSIONAL

Autores/as: CLAUDE LESSARD

 Há vários sentidos para a noção de autonomia profissional. Tudo depende da entrada, que é privilegiada, e eu identifico três delas: 1) a entrada pela sociologia clássica do trabalho, que associa a autonomia dos trabalhadores a sua capacidade coletiva de subtrair-se ao controle patronal; 2) a entrada pela sociologia das profissões, que concebe essa mesma autonomia em termos do controle exercido por um determinado grupo sobre um campo de atividade socialmente legítima e sobre a capacidade dos membros desse grupo de nele definir, regulamentar e dispensar um serviço reconhecido e 3) a entrada pelas ciências do trabalho, principalmente pela ergonomia cognitiva francesa, que faz da autonomia no trabalho uma condição essencial da eficácia desenvolvida pelos trabalhadores.

Na sociologia do trabalho clássica (francesa e de inspiração marxista), o que é primordial e determinante é a relação salarial de trabalho, o fato de o trabalho estar inserido em um sistema de relações sociais marcadas pela exploração, pela submissão, pela alienação e pela dominação.

Para essa sociologia, o modelo ideal do trabalho é o trabalho artesanal e pré-industrial, no qual o trabalhador, membro de uma comunidade de trabalhadores (uma “corporação”), controla ao mesmo tempo o processo e o produto de seu trabalho. É preciso, entretanto, prestar atenção: sabemos hoje que as corporações artesanais exerciam na Idade Média um controle muito grande sobre o trabalho, pois o artesão aprendiz devia se submeter às imposições do mestre e realizar seu trabalho segundo os processos estabelecidos, aceitos e frequentemente mantidos em segredo, ou seja, acessíveis apenas aos iniciados. O artesão da Idade Média não é um “artista” moderno autônomo, livre para transgredir a seu bel prazer as regras da profissão. Apesar disso, coletivamente, os artesãos agrupados no seio de uma corporação exerciam um controle importante sobre seu trabalho.

No regime capitalista, o trabalhador perdeu o controle sobre seu trabalho. Ele tem duas opções: a submissão passiva e a resignação, ou a resistência ativa. Nesse último caso, a busca da autonomia no trabalho se manifestará por ações, muitas vezes constatadas, de diminuição coletiva do ritmo do trabalho, de resistência às pressões para um rendimento cada vez maior, de revolta contra o controle arbitrário dos contramestres e de reivindicações para diminuir o peso e o rigor do trabalho.

Pode-se dizer que, aqui, a autonomia profissional é sinônimo de luta pelo controle, por parte dos trabalhadores, de um trabalho dominado e da liberação das pressões pesadas demais e desumanizantes. De acordo com a expressão de Fromm (1972, p. 46-47; p. 50-51), a liberdade (“freedom”) é, inicialmente e antes de tudo, liberação das pressões e controles externos (“freedom from”).

Na sociologia das profissões, de inspiração weberiana, a autonomia profissional diz respeito ao controle exercido pelo grupo sobre um campo de trabalho e suas diversas dimensões: a qualificação e a formação, o recrutamento dos membros, a carreira, a remuneração e o status social, o próprio trabalho, sua organização e avaliação. As profissões tidas como « estabelecidas » (medicina, direito) encarnam essa visão e a autonomia, em sua forma final, constitui aí um monopólio legalizado.

Muitos campos de trabalho são mais ou menos « profissionalizados ». A noção de profissionalização remete a um movimento social que, quando coroado de sucesso, permite a um grupo assentar sua autoridade sobre um campo de atividade e um segmento do mercado de trabalho. Essa autonomia é uma conquista e ela é relativa: dessa forma, os acadêmicos, preocupados com sua autonomia em pesquisa, constatam cada vez mais sua dependência em relação aos órgãos de financiamento, públicos e privados, e às políticas governamentais que associam o desenvolvimento científico e tecnológico ao desenvolvimento econômico.

Nessa entrada, a autonomia profissional é, evidentemente, sinônimo de ausência de controle externo, mas ela se apresenta também como uma autoridade legítima para executar uma tarefa e realizar um trabalho de acordo com as regras de prática estabelecidas pelo grupo profissional. Voltamos, nesse caso, às corporações artesanais da Idade Média.

Essa autonomia profissional é, antes de tudo, coletiva; é a autonomia do grupo e espera-se que cada indivíduo devidamente formado e socializado comporte-se de acordo com as regras elaboradas pelo grupo profissional. Isso se dá nos dois sentidos: a autonomia, em certas condições, torna possível o desenvolvimento da competência do grupo profissional e a competência demonstrada, isto é, eficaz, reforça a autonomia reivindicada. Daí vem o segundo sentido da autonomia, “freedom to”, liberdade de agir, de afirmar uma competência, de “professar” valores de serviço, e autorização e responsabilidade (“empowerment”). Estamos aqui além da liberação das pressões e controles, estamos no mundo da operacionalização, enquadrada, é verdade, mas autônoma, de um serviço socialmente reconhecido.

Nas ciências do trabalho, a autonomia profissional está ligada ao exercício do julgamento em situação, ela remete à parte do sujeito no trabalho que gerencia situações contingentes, indeterminadas e imprevisíveis. Ele deve saber utilizar ferramentas e procedimentos para enfrentar a situação de trabalho que o interpela, deve inclusive transgredir regras acordadas ou impostas, ou modificá-las de uma maneira ou de outra, caso contrário, o trabalho não se realiza ou não é eficaz. Aqui a autonomia é uma necessidade prática da atividade, é aquilo que torna o trabalho eficaz.

É conhecida a distinção clássica que fazem os ergonomistas entre o trabalho prescrito e o trabalho real, o último compreendendo a parte do sujeito que age em situação. Essa distância não é condenável, é o lugar em que se exprime uma forma de inteligência e de criatividade, uma astúcia que permite que a atividade mantenha-se e o trabalho seja feito, evolua e seja eficaz. Mas essa inteligência no trabalho escapa ao controle daqueles que prescrevem as normas. Ela é uma particularidade de cada trabalhador ou de cada coletivo concreto, confrontado a uma situação de trabalho complexa e incerta, que exige iniciativa e adaptação.

Esse terceiro sentido da autonomia remete então a uma obrigação prática associada à eficácia do trabalho. Antes de ser uma reivindicação, uma conquista, uma afirmação coletiva, a autonomia aparece aqui como um fato e uma necessidade, inúmeras vezes constatados em diversos contextos. Como prova ao contrário de sua necessidade, pensemos nos efeitos de uma “operação padrão”, isto é, uma submissão mecânica a todas as prescrições do trabalho.

Há, então, vários sentidos para a autonomia profissional e duas dimensões principais associadas a ela (individual e coletiva). Em um primeiro sentido, a autonomia é ausência de controle sobre o trabalho (“freedom from”, liberação das pressões e dos controles). Em um segundo sentido, ela é liberdade de agir “empowerment” ou autorização legítima para realizar uma tarefa (“freedom to, liberdade de agir como é necessário em um campo de ação socialmente constituído). Em um terceiro sentido, a autonomia é uma condição concreta e necessária para a eficácia do trabalho.

Como quer que seja, a autonomia é hoje recuperada pelos prescritores neoliberais do trabalho (CHATZIZ et al., 1999): ela se tornou uma injunção paradoxal formulada pelos administradores modernos, inspirados no New Public Management, aproximadamente assim: « caros empregados, sejam autônomos, exerçam seu julgamento, inovem…Vamos lá, nós os encorajamos a tomar iniciativas». Frequentemente, essa prescrição diz respeito ao coletivo de trabalho: « trabalhem juntos, organizem-se, etc. ». Vista aqui no plano da prescrição, a autonomia deve se tornar coletiva, uma forma de interdependência horizontal e de ajuste mútuo, própria de um coletivo de trabalho que se quer tornar responsável e encarregado de sua atividade.

Bibliografia

CHATZIS, K et al. (Org.) L’autonomie dans les organisations:quoi de neuf ? Paris: L’Harmattan, 1999.

FROMM, E. Medo à liberdade. Rio de Janeiro: Zahar, 1972.

LESSARD, C. Autonomie professionnelle et régulation de l’éducation: une évolution problématique. Québec :, CSQ, options, hors série no 2, des propositions pour une meilleure éducation au Québec. 2009. p. 214-228.

LESSARD, C. Jusqu’où prescrire le travail enseignant ? In : GOSSELIN, G.; LESSARD, C.  Les deux principales réformes de l’éducation du Québec moderne : témoignages de celles et de ceux qui les ont initiées. Québec, Presses de l’Université Laval, 2008. p. 449-475.