CAPITAL CULTURAL
Conceito formulado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, a partir da década de 1960, tornou-se uma das categorias analíticas mais poderosas e mais utilizadas na pesquisa educacional contemporânea. Partindo do pressuposto de que o mundo social é multidimensional e que, portanto, os bens econômicos ou financeiros não constituem a única forma de riqueza que fundamenta a divisão da sociedade em classes ou estratos sociais, o autor forneceu, ao longo de sua obra, inúmeras e robustas evidências empíricas da existência de outros tipos de recursos que atuam na definição da posição ocupada por um indivíduo (ou por um de um grupo de indivíduos) no interior das hierarquias sociais. Ele defende que as diferenças relativas às condições materiais de existência se transmutam por meio de um processo subjetivo de internalização de disposições e de competências em diferenças no estilo de viver, isto é, na maneira de se usufruir os bens materiais possuídos, engendrando distinções simbólicas entre os indivíduos ou, em outras palavras, distinções relativas à posse de bens culturais.
Tomando então de empréstimo ao vocabulário de Marx o termo capital, Bourdieu acoplou-o ao qualificativo cultural, para deixar bem claro que se trata de uma dimensão da realidade social que – a exemplo da vida material – implica igualmente na produção, distribuição e consumo de (um tipo específico de) bens capazes de render dividendos, ou seja, de proporcionar lucros simbólicos a seus detentores.
Esse conjunto de bens simbólicos englobados sob a expressão de capital cultural pode existir, para o autor, sob três modalidades (Bourdieu, 1998):
a) em seu estado incorporado, apresenta-se como disposições ou predisposições duradouras que se entranham no corpo de uma pessoa, tornando-se suas propriedades físicas (ex.: posturas corporais, esquemas mentais, habilidades linguísticas, preferências estéticas, competências intelectuais, etc.);
b) em seu estado objetivado, configura-se como a posse de bens materiais que representam a cultura dominante (ex.: livros, obras de arte e toda sorte de objetos colecionados em bibliotecas, museus, laboratórios, galerias de arte, etc.);
c) em seu estado institucionalizado, manifesta-se como atestado e reconhecimento institucional de competências culturais adquiridas (ex.: o diploma e todo tipo de certificados escolares).
Como se vê, para se constituírem em capital, é preciso que esses bens tenham como única fonte aquela parte da produção cultural humana identificada com o produto e com as propriedades intelectuais das classes dominantes, configurando aquilo que o autor denomina de cultura legítima porque tem curso e validade na escala da sociedade como um todo. O que significa dizer que esse repertório cultural que é particular (porque emanado de um determinado grupo social) tem o poder de se impor e de se fazer reconhecer por todos, adquirindo a aparência (enganosa) de universal.
No caso das sociedades capitalistas contemporâneas, as duas principais formas de capital – o capital econômico e o capital cultural estão, ambas, desigualmente distribuídas entre a população e, por isso, operam em favor da reprodução das estruturas de dominação, embora os bens simbólicos o façam de um modo mais indireto e menos perceptível. Tudo isso fica mais claro quando se toma o caso da instituição escolar, principal agência responsável pela distribuição do conhecimento legítimo. No início de sua carreira de pesquisador, Bourdieu estava em busca de uma ferramenta conceitual que conseguisse explicar as oportunidades desiguais de sucesso escolar que tinham os alunos pertencentes aos diferentes meios sociais. Em outras palavras, era preciso explicar sociologicamente a alta probabilidade de fracasso escolar existente entre as crianças e jovens socialmente desfavorecidos, sem recorrer àquilo que ele designava como a ideologia do dom. É que até meados do século XX, a explicação predominante para essa desigualdade fundava-se na ideia de que os seres humanos seriam dotados de aptidões intelectuais inatas que faziam deles sujeitos naturalmente e desigualmente munidos dos atributos intelectuais requeridos pela aprendizagem escolar. Com base em uma série de grandes levantamentos quantitativos produzidos na França, a partir dos anos 1950, que demonstravam uma alta correlação estatística entre a origem social do aluno (sobretudo o nível de escolaridade dos pais) e seu desempenho escolar, Bourdieu começa então a testar novas hipóteses que tinham por sustentação a ideia de que as crianças originárias das classes sociais superiores herdam de suas famílias todo um patrimônio cultural diversificado composto de estruturas mentais, domínio da língua culta, cultura geral, posturas corporais, disposições estéticas, bens culturais variados etc., os quais se transformam em vantagens, uma vez investidos no mercado escolar. Mas isso só acontece porque os conteúdos curriculares impostos aos alunos e os sistemas de avaliação da aprendizagem praticados pela instituição escolar se assentam na cultura legítima que é – como já vimos – composta pelos produtos simbólicos socialmente valorizados (as letras, as ciências, as artes) que derivam dos grupos sociais dominantes que exercem assim sobre os grupos dominados uma ação de « violência simbólica ». Prosseguindo em sua tarefa de desvendar o funcionamento social dos sistemas de ensino, o sociólogo desenvolverá a tese de que essa empreitada pedagógica só é bem sucedida porque a seleção e a classificação escolar dos alunos se revestem da aparência (socialmente aceitável) do mérito individual, dissimulando, portanto, a realidade do privilégio social (Bourdieu, 1998). Assim, a instituição escolar constituiria, segundo ele, um fator de reprodução, e não de democratização da sociedade, como defendia toda uma geração de sociólogos funcionalistas que o antecedeu. Segundo esse raciocínio, as trajetórias escolares tornam-se inteligíveis em uma lógica de transmissão intergeracional, em que o capital cultural é erigido como o princípio primeiro (ou seja, mais importante do que a riqueza econômica) das desigualdades de resultados escolares. Essa operação de separação analítica marcou (e marca até hoje) profundamente a pesquisa educacional que tendia, até então, a confundir e a mesclar os fatores culturais com os fatores econômicos, em suas tentativas de explicar a gênese das desigualdades frente aos bens de cultura.
Oito anos após a morte de seu
criador e decorridas quatro décadas da formulação do conceito de capital
cultural, é preciso reconhecer que esse instrumento não só constituiu um ponto
de ruptura face às abordagens clássicas do sistema de ensino, mas, graças a seu
grande potencial heurístico, tornou-se uma referência teórica fundamental nas
análises das desigualdades de escolarização, ao longo de toda a segunda metade
do século XX, estendendo-se até os dias de hoje.