CARGA DE TRABALHO

Autores/as: FRANCISCO LIMA

A carga de trabalho é um fenômeno que a ciência dificilmente consegue apreender, mas, não obstante, real, como cada um pode constatar pela experiência. Com efeito, como explicar a epidemia de doenças musculoesqueléticas no fim do século XX e a crescente incidência de transtornos mentais no início do século XXI, senão pela sobrecarga de trabalho físico e mental? A regulação social da carga de trabalho que uma pessoa assumir é, assim, um problema que se impõe, apesar de o conceito de carga de trabalho ser comumente considerado uma noção imprecisa (JOURDAN; THEUREAU, 2002), escapar às medições científicas ou ser estéril para orientar a transformação do trabalho (GUÉRIN et al., 2001, p. 139).

A noção de “carga de trabalho” nos remete naturalmente a situações de sobrecarga, sugerindo definição de limites de tolerância, ao estilo da higiene ocupacional, e a possibilidade de avaliação quantitativa. No entanto, não se pode tentar medir algo que não se conhece. Avaliar ou medir a carga de trabalho pressupõe, portanto, conhecer o que a constitui, seus componentes fundamentais. A atividade de trabalho se associa imediatamente a um determinado esforço e, consequentemente, a um desgaste maior ou menor do trabalhador, que deve ser adequadamente dimensionado de forma a permitir que o trabalhador reponha suas forças físicas e psíquicas após cada jornada ou duração de trabalho. Em todo trabalho, existem pausas formais e informais, inclusive micropausas em atividades repetitivas, que evitam que o esforço gere fadiga física, cognitiva ou psíquica por sobrecarga.

Carga de trabalho, esforço e fadiga são fenômenos diferentes, mas intimamente inter-relacionados. Para compreender o que é a carga de trabalho, é necessário adotar uma perspectiva histórica que nos explique como o trabalho se transforma em força de trabalho. Ver-se-á, ao cabo, que carga de trabalho é a expressão positivista de contradições sociais em torno da produção do valor. Embora pareça ser uma preocupação moderna, como dimensionar o esforço ou a carga de trabalho que um trabalhador pode suportar é um problema que ocupa os homens desde sempre. Em cada momento histórico, ou modo de produção, são dadas soluções diferentes ao mesmo problema de se avaliar a carga de trabalho suportável ou o esforço que cada um deve dar em seu trabalho, para si mesmo e para a comunidade a que pertence. Como esse esforço global deve se distribuir ao longo do dia, da semana, do ano e de toda uma vida, é a questão central que define relações entre classes de dada formação social e como cada indivíduo poderá dispor de suas energias vitais e do tempo finito de sua vida no interior de dada sociedade.

Independentemente de se poder explicar ou não como essas energias vitais se combinam e se transformam, é certo que as situações de sobrecarga mostram que seu uso pode ser mais ou menos intenso em um intervalo de tempo, que vai de ciclos repetitivos à escala de uma vida que pode se desgastar completamente no trabalho. A carga de trabalho é, portanto, uma complexa função de: duração da atividade, ritmo e intensidade do esforço, tipo de tarefa, estratégias de regulação (que, por sua vez, dependem das competências do trabalhador e das condições de trabalho em sentido amplo), ciclos e pausas (horárias, diárias, entre jornadas, semanais e anuais, com seus feriados e férias mais longas, implicação, interesse e sentido do trabalho para o trabalhador). Essa função é complexa, não apenas porque a lista de variáveis é extensa, mas também porque elas são interdependentes (veremos como carga de trabalho e competências estão em relação de codeterminação) e dinâmicas. Marx (1983), ao analisar a redução da jornada de trabalho e a mecanização, já percebera como um mesmo trabalho realizado com menor duração pode ser mais intenso, mais saudável e mais produtivo.

Adotar uma perspectiva histórica para se discutir a carga de trabalho tem algumas vantagens. Primeiro, pode-se evidenciar os termos nos quais cada sociedade tenta equacionar o problema da avaliação da carga de trabalho, incluindo que aspectos são considerados em sua definição; segundo, a comparação histórica mostra como cada “solução” é socialmente condicionada e permite relativizar o lugar das técnicas de avaliação e de quantificação da carga de trabalho que tendem a se impor no mundo do capital; terceiro, podemos explicar a “dinâmica” da carga de trabalho e, finalmente, compreender por que se trabalha tão intensamente nesta passagem de século, quando a tecnologia permitiria reduzir o fardo que cada um de nós tem que carregar. Dessa forma, é o problema mesmo de avaliação da carga de trabalho que será, ao final, colocado em questão, enquanto questão puramente técnica ou passível de mensuração.

Em sociedades fundadas no trabalho escravo, a carga de trabalho era regulada pelas leis, pelo senso de justiça e pela sabedoria provida pela experiência. A arte da administração familiar (oikos) requer o discernimento entre aqueles escravos que se esforçam, e não fogem à fadiga e ao risco (conforme, também, XENOFONTE, 1995, p. 99), que devem ser elogiados e distinguidos com melhores roupas e alimentos daqueles que são indolentes, que devem ser castigados. Como, apesar da condição de escravo ser natural, o trabalho lhe é estranho, as causas (hoje se diria motivação) que o colocam em atividade devem ser externas. Assim, recomenda Aristóteles: “Para todos eles se deve fixar também um objetivo concreto: na realidade, é justo e vantajoso estabelecer como prêmio a liberdade, pois eles aplicam-se com mais vontade ao trabalho quando têm em vista uma recompensa e um limite de tempo definidos”. (ARISTÓTELES, 2004, p. 42) O mesmo se pode encontrar em Xenofonte: a oikonomia é a arte de lutar contra “a preguiça, a fraqueza de caráter e negligência” que impedem a prosperidade (XENOFONTE, 1995, p. 30). Faz parte da economia, o senso de justiça para “atribuir a um homem forte uma carga mais pesada” (XENOFONTE, 1995, p. 111) e “tarefas mais leves aos mais fracos” (XENOFONTE, 1995, p. 112). Entre os gregos, a carga de trabalho é multidimensional, comportando inclusive aspectos éticos, e sua determinação se resolve, por assim dizer, do exterior, e implica o desenvolvimento ou formação integral do indivíduo, evidentemente mantendo sua posição social natural: de cidadão ou escravo, homem ou mulher. Mesmo assim, recomenda Xenofonte, quando se reconhece que os escravos “não são apenas levados a serem justos em função dos ganhos obtidos pela boa conduta, mas que eles desejam também elogios de minha parte [do senhor], esses eu os trato como homens livres: não apenas faço sua fortuna, mas os honro como homens de qualidade”. Isso porque “o amor à honra difere do amor ao dinheiro” (XENOFONTE, 1995, p. 101-102).

A transição entre épocas históricas evidencia mais facilmente, pelo contraste, as regras pelas quais se tenta, em cada formação social, resolver o problema de avaliação da carga de trabalho. Hobsbawm (1974) descreve como o costume dos ofícios e as leis do mercado contrastam quanto à definição dos ganhos e da carga de trabalho. Durante o século XIX, “o esforço dos trabalhadores, a norma ou meta de produção por unidade de tempo, era mais determinado pelo costume do que por cálculos mercantis” (HOBSBAWM, 1974, p. 236). Os critérios para se definir um “justo dia de trabalho” [a fair day’s work] eram heterogêneos e complexos, envolvendo determinantes fisiológicos (ritmo e esforço que um homem poderia manter continuamente, considerando períodos de descanso); técnicos (tipo de trabalho); sociais (formação de equipes com cadência de trabalho que aumentasse o desempenho dos mais lentos, permitindo que ganhassem um “salário diário justo”[a fair day’s wage]); econômicos (quanto trabalho equivale a um “salário justo”); e históricos (costumes e tradições dos ofícios, relação mestre-aprendiz).

Em um texto clássico, em que descreve o surgimento do relógio como instrumento de disciplina do trabalho, Thompson (1998) compara dois padrões de relação entre tempo e trabalho. Nas comunidades tradicionais e rurais, a notação do tempo é “orientada pelas tarefas”, que se caracteriza por ser mais humanamente compreensível, em que há pouca separação entre o “trabalho” e a “vida”, por seguir ritmos naturais intrínsecos à produção, de modo que, diz Thompson, “aos homens acostumados com o trabalho marcado pelo relógio, essa atitude com o tempo parece perdulária e carente de urgência” (THOMPSON, 1998, p. 272). Nas atividades tradicionais, “O padrão de trabalho sempre alternava momentos de atividade intensa e de ociosidade quando os homens detinham o controle de sua vida produtiva. (O padrão persiste ainda hoje entre os autônomos – artistas, escritores, pequenos agricultores e talvez até estudantes – e propõe a questão de saber se não é um ritmo “natural” de trabalho humano)”. (THOMPSON, 1998, p. 282).

Sobre esse tempo definido pela natureza das tarefas, essencialmente irregular e variável, vai se sobrepor um tempo homogêneo e repetitivo, que responde melhor às exigências de sincronização dos diversos trabalhos e atividades reunidos em uma fábrica sob o comando do capitalista: “O pequeno instrumento que regulava os novos ritmos da vida industrial era ao mesmo tempo uma das mais urgentes dentre as novas necessidades que o capitalismo industrial exigia para impulsionar o seu avanço.” (THOMPSON, 1998, p. 279). O controle das diversas atividades pelo tempo uniforme do relógio, imposto do exterior, tem efeitos diretos e indiretos sobre a carga de trabalho, ao comprimir durações diversas em um mesmo tempo padrão e também ao impedir ou dificultar formas de regulação autônomas.

Thompson transcreve algumas passagens do regulamento de uma siderúrgica no século XVIII, elaborado pelo próprio patrão, que são exemplares: “Tenho sido horrivelmente enganado, com a conivência dos funcionários do escritório, por várias pessoas que trabalham por dia, e tenho pagado por muito mais tempo de trabalho do que em sã consciência devia pagar, e tal é a vileza e a traição de vários empregados do escritório que eles ocultam a preguiça e a negligência dos que são pagos por dia (…)” (THOMPSON, 1998, p. 289-290). Para o mesmo problema de administração dos escravos entre os gregos, que também lutam “contra a preguiça, a fraqueza de caráter e negligência”, é notável a diferença da solução encontrada pelo capital, que pretende separar justos e ladrões não pelo desenvolvimento e formação de homens virtuosos, mas pela medição e controle do tempo. O pecado da usura se explica pela mesma razão: obter ganhos sem trabalho e esforço, como mostrado nos sermões coletados por Le Goff: “Conheceis, irmãos, um trabalhador que não descansa aos domingos e feriados, e que não para de trabalhar enquanto dorme. Não? Pois bem, a usura continua trabalhando dia e noite, aos domingos e feriados, no sono como na vigília! Trabalhar dormindo. Este milagre diabólico, a usura, aguilhoada por satã, consegue executá-lo.” (tábula Exemplorum. Séc XIII, apud LE GOFF, 1989, p.30)

Na modernidade caracterizada pelo advento do capital, Marx resolve a questão fundamental da economia política sobre a origem do valor com a distinção entre trabalho e força de trabalho, mercadoria capaz de produzir mais do que vale, desde que a jornada de trabalho se estenda para além do trabalho necessário para a reprodução do trabalhador. Uma particularidade da mercadoria força de trabalho é sua inseparabilidade do corpo do trabalhador que a vende. Como qualquer outro proprietário que quer usufruir de um valor de uso que adquiriu, o capitalista zela para que a força de trabalho funcione em condições normais. Isso quer dizer que “Essa força tem de ser despendida no grau médio habitual de esforço, com grau de intensidade socialmente usual. Sobre isso o capitalista exerce vigilância com o mesmo temor que manifesta de que nenhum tempo seja desperdiçado, sem trabalho. Comprou a força de trabalho por prazo determinado. Insiste em ter o que é seu. Não quer ser roubado.” (MARX, 1983, p. 161). Ora, desde o século XVII, paralelamente ao surgimento da economia política, cientistas de vários campos (engenheiros, físicos, químicos, fisiologistas, médicos,…) têm se esgrimido com esse problema, procurando fixar, para além dos conflitos sociais, a justa jornada de trabalho. Taylor é apenas o mais conhecido dentre eles, sem ser, todavia, o mais rigoroso em seus postulados de uma organização científica do trabalho e tampouco o mais inovador nos conceitos e métodos de análise.

O problema que originalmente os engenheiros enfrentaram era: como medir a produção e o consumo dos homens e das máquinas, como otimizar a sua utilização? (VATIN, 1993, p. 10). Noutros termos, que carga de trabalho se deve alocar a homens, cavalos e máquinas de modo a otimizar seu desempenho? A técnica revela assim possuir um conteúdo propriamente econômico: não se trata mais de obter o máximo de efeito absoluto (como ocorre em desempenho atlético ou recordes esportivos), mas o máximo relativo, o rendimento por um gasto determinado. Não há diferença se o meio em que opera essa força são dispositivos mecânicos, animais ou homens. Procura-se “medir, para os homens como para os cavalos, a força econômica”, aquela que pode ser mantida durante várias jornadas de trabalho com uma fadiga “normal” e não um recorde instantâneo que não teria nenhum interesse prático” (VATIN, 1993, p. 20). Uma dificuldade, no entanto, jamais foi resolvida pelos engenheiros e físicos – a influência do tempo de execução de trabalho –, variável indiferente do ponto de vista da natureza, mas essencial para explicar o processo de valorização econômica. Com efeito, é indiferente para a análise em termos físicos que se obtenha o mesmo trabalho num tempo t1 ou em t2=2t1, quando do ponto de vista econômico isso significaria duplicar a valorização do capital empregado, mas implica também que a carga de trabalho deve aumentar com a intensificação do trabalho.

No século XX, mesmo quando a automação tende a reduzir o trabalho imediato, portanto, tornar a produção relativamente independente do esforço do trabalhador, ainda se desenvolvem métodos para se medir a carga de trabalho, agora não apenas do corpo mas também da cognição e das emoções (indicadores de estresse). Em sistemas automatizados, a carga de trabalho parece estar em relação inversa com a automação: quanto mais autônomo o sistema, quanto mais estável, menos o operador terá que se ocupar dele e de se preocupar com ele. Em um sistema automatizado, um trabalhador atarefado é sinal de que as coisas vão mal: a intensidade do trabalho aumenta quando o sistema se desregula, quando os automatismos deixam de funcionar adequadamente. Por isso, o interesse recente em se medir a carga mental, pois a cognição (atenção, vigilância, resolução de problemas, percepção…) se tornou a dimensão preponderante da atividade de trabalho. O paradoxal, no entanto, é que a subcarga cognitiva tornou-se um dos principais determinantes da carga de trabalho considerada de forma global. Manter a atenção em atividades de vigilância quando pouco ou nada acontece é uma das maiores dificuldades que os operadores enfrentam ao lado das falhas emergenciais. O trabalho oscila entre longos períodos em que tende a predominar a quase inatividade, com poucas exigências sobre os trabalhadores, e raros períodos de intensa atividade, quando ocorrem falhas mais ou menos graves do sistema. Assim, avaliação da carga de trabalho já não pode mais ser uma medida direta, entre o conteúdo da tarefa e o esforço exigido do operador, pois esse muda de operador a operador (e mesmo para um mesmo operador) e aumenta quando existe sobrecarga ou subcarga cognitiva. As inter-relações complexas entre os componentes específicos da carga de trabalho global atribuem sinais diferenciados a uma mesma variação. Dependendo, por exemplo, da implicação no trabalho, um esforço físico pode ser gratificante ou fonte de sofrimento e desprazer.

Outra mediação que dificulta a avaliação da carga de trabalho é a relação entre exigências da tarefa, competências e esforço, o que cria situações paradoxais, pois uma mesma tarefa pode gerar esforços diferentes, a carga de trabalho objetiva (constraint) sendo ressentida (astreint) de modo diverso, dependendo das competências do sujeito e de suas estratégias de regulação. Na ergonomia, é comum associar complexidade de uma tarefa à carga de trabalho elevada, o que se revelou uma associação precipitada: “Se a complexidade da tarefa depende do agente que a executa, então um problema essencial é o de caracterizar a relação entre o agente e a tarefa. (…) Complexidade e competência estão numa relação de codeterminação e se apresentam como as duas faces de uma mesma moeda. (LEPLAT, 2004) Atualmente a ergonomia da atividade abandonou a pretensão de medir a carga de trabalho e a define como “a margem de manobra da qual dispõe um operador num dado momento para elaborar modos operatórios tendo em vista atingir os objetivos exigidos, sem efeitos desfavoráveis sobre seu próprio estado” (GUÉRIN, 2001, p. 67).

Finalmente, a avaliação da carga de trabalho esbarra na dificuldade da ciência ainda cartesiana para lidar com fenômenos complexos, organizados em uma totalidade de dimensões heterogêneas. A carga de trabalho é um fenômeno típico. Considerando suas manifestações subjetivas, envolve sempre, em proporções diversas dependendo da atividade, inter-relações entre corpo, cognição e emoções. Além da carga física e cognitiva (mental), a carga psíquica adquire dimensões importantes em diversos tipos de trabalho, sobretudo quando envolve relacionamento com o público. Atualmente com as “empresas hipermodernas” (GAULEJAC, 2007) e sistemas de gestão baseados em metas e avaliação de desempenho, essa carga psíquica tende a se generalizar. Essas empresas adotam modelos de gestão, que colocam metas impossíveis e sempre crescentes, e conseguem, apesar de tudo, mobilizar os trabalhadores, ainda que não lhes sejam dadas as condições de trabalho adequadas para melhorar o desempenho, que se dá em meio a objetivos contraditórios e injunções paradoxais.

A intensificação do trabalho e a carga de trabalho decorrem, em última instância, da natureza do valor. Como Marx o caracterizou, o valor é “trabalho humano abstrato”, “dispêndio de força de trabalho humano, sem consideração pela forma como foi despendido” (MARX, 1983). Para o processo de produção do valor, uma meta alcançada já não tem mais importância, pois se tornou pressuposto e ponto de partida de um novo ciclo; a meta alcançada é apenas a base para se definir a nova meta. O processo de valorização molda diretamente o processo de trabalho, como se a voracidade do capital – que enquanto tal não se cansa, pois somente existe em movimento de autovalorização; o capital não é apenas valor, mas valor que se valoriza – tivesse que ser incorporada em trabalhadores incansáveis, sempre criativos e superando recordes como atletas de alto desempenho.

A carga de trabalho depende da implicação subjetiva do trabalhador em seu trabalho, em ver sentido no que faz e se reconhecer nos produtos de seu trabalho, como uma obra pessoal. Dessa forma, o trabalho pode ser mais ou menos penoso se é desenvolvido sob coerção ou de forma voluntária, entre os extremos do trabalho escravo e o trabalho criativo do artista e do cientista. Nesse caso, o esforço e a fadiga podem ser obscurecidos pelo sentido do trabalho para quem o realiza. Ao contrário, ter de se dedicar de corpo e alma a um trabalho sem sentido apenas sobrecarrega o corpo e a alma.

Dadas todas essas dimensões heterogêneas e complexidades do esforço que cada um de nós realiza ao trabalhar, o problema mesmo da avaliação da carga de trabalho se mostra sem sentido. Dar-lhe uma solução em termos de medida, mostra-se não apenas complicado, mas inadequado em relação a sua natureza. Se o trabalho é uma atividade humana, somente o homem pode ser sua medida, como esse esforço é algo que implica a subjetividade inteira e penetra todas as esferas da vida do indivíduo, não apenas sua situação de trabalhador, essa medida já não pode lhe ser externa. A quem interessa analisar e medir a carga de trabalho supondo que esse conhecimento positivista do trabalho fosse possível? A sua justificativa histórica é, como vimos, a necessidade de se definir uma jornada normal de trabalho, evidentemente numa situação social em que não se pode aplicar na organização do trabalho o princípio “de cada um segundo suas possibilidades” (MARX, 1983).

Começamos indagando em que consiste e como se pode avaliar a carga de trabalho; concluímos pela impropriedade mesmo da pergunta. A carga de trabalho é um fenômeno global e complexo, e implica o ser humano inteiro, ainda que o trabalho não seja toda a vida. Como o indivíduo é uma totalidade indissociável em suas esferas de ação diversas, uma avaliação global da carga de trabalho equivale à avaliação de uma forma de vida, que só pode ser feita em processo social de formação dos homens, como tem sido historicamente posto. Medidas da carga de trabalho são sempre localizadas, pontuais e incidindo sobre variáveis específicas, necessariamente analíticas; carregar peso, detectar alarmes, processar informações, etc. Mesmo um indicador global é uma composição de medidas específicas. Na análise do específico, eventualmente mensurável, pode-se contar com análise multivariada, englobando dimensões físicas, cognitivas e afetivas, mas ainda longe de se ter um modelo sintético global que associe dimensões fisiológicas, cognitivas e emocionais. A carga de trabalho não se resolve em uma soma de efeitos, mas em inter-relações complexas entre dimensões heterogêneas que produzem um efeito global e, dependendo da situação, acentuando uma dimensão ou outra. Avaliar a carga de trabalho é, assim, avaliar a própria vida, por isso, ela revela os fundamentos de uma dada organização social e suas contradições essenciais. Não poderia ser diferente para algo que está no centro da relação entre trabalho e vida, o que os une e o que os separa em uma dada forma de vida.

Bibliografia

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