CARPA BLANCA
A instalação de uma tenda(Carpa) de cor branca em frente ao Congresso Nacional Argentino e o jejum rotativo de docentes durante 1003 dias (de 2/4/97 a 30/12/99) foram a forma de expressão e a estratégia de confrontação que a Confederação de Trabalhadores da Educação da República Argentina (CTERA) encontrou para manifestar sua demanda por um fundo de financiamento para a educação pública do país. Dessa maneira, o sindicato docente conseguiu dar visibilidade, acompanhar e articular no âmbito nacional o conjunto cada vez mais heterogêneo e disperso de lutas sindicais docentes nas províncias da república. Com efeito, o que caracterizou a conflitividade docente no país durante a primeira metade da década foi a multiplicidade, a simultaneidade, a diversidade e o isolamento das lutas gremiais, assim como seu caráter cíclico e recorrente (GENTILI; SUÁREZ, 2004).
Superando as previsões dos sindicalistas, a Carpa Blanca foi ganhando a adesão de diferentes organizações sociais e sindicais do país e do estrangeiro através de múltiplas manifestações de consenso ativo. Apesar do mutismo inicial dos funcionários governamentais, a Carpa abriu um amplo debate social e político sobre o sentido, estado e futuro da educação pública na Argentina. Ao mesmo tempo, a modalidade adotada para a expressão das demandas significou um ponto de inflexão nas tradições de confrontação sindical. Tal como assinalara Beatriz Sarlo (1999), a “entrada em cena” da Carpa Blanca pode ser pensada como uma “obra conceitual”, “instalação urbana” e “happening continuado”, na medida em que se revelou uma potente “intervenção política cultural” dos docentes. Ao mesmo tempo em que inaugurou um “sentido de comunidade” e uma esfera de debate público sobre a escola e as condições para o ensino, foi se constituindo com velocidade em um ícone da “luta pela defesa da educação pública” da América Latina e do mundo (GALANO, 2001). O “branco” da Carpa remete facilmente à emblemática cor dos guarda-pós dos alunos e professores da escola pública e, com um esforço de memória, à “Marcha Branca” (Marcha Blanca) que o sindicalismo docente havia promovido em 1988, logo após uma histórica greve nacional de docentes que durou mais de 40 dias (RODRÍGUEZ; BERROSTEGUIETA, 1989). Por seu lado, o jejum dos docentes não é difícil de associar com a “fome” e deterioração das condições de trabalho que suportavam desde a implementação das políticas de ajuste neoliberal.
A partir da emergência de questões que a política educacional do governo de Carlos Menem, até esse momento, vinha deslegitimando ou tratando de ocultar, a operação simbólica e midiática que os docentes produziram ao redor da Carpa inaugurou um processo efetivo de recomposição da agenda educativa. Novos temas e problemas começaram a ocupar um lugar central: o financiamento adequado da educação, a responsabilidade educativa do Estado nacional, a educação como um direito social que deveria ser garantido, o pagamento pontual dos salários docentes, a necessária vinculação da educação com o modelo e a política econômica, entre outras questões, vieram à tona na cena pública tornando mais políticos e gerais, e menos setoriais e reivindicativos, as demandas dos docentes. Contudo, além de implicar uma guinada na consideração pública dos assuntos educativos e nas modalidades de luta sindical e social, a Carpa também pode ser considerada um ponto de convergência e ressonância de lutas e resistências sociais muito heterogêneas. A partir da eficácia da estratégia adotada, multiplicada por várias greves nacionais de adesão de massa e numerosas mobilizações, os sindicatos docentes chegaram a congregar a vontade, a adesão e a presença de muitas pessoas em torno dessas questões (SUÁREZ, 2005).
Os sindicatos docentes já vinham resistindo às políticas econômica, laboral e educativa do governo de Carlos Menem. Identificavam-nas com o programa político neoliberal para América Latina e com a progressiva ingerência local dos organismos internacionais de crédito. Foram justamente esta filiação ideológica e política e as consequências econômicas, sociais e educativas nefastas que lhes eram atribuídas que se constituíram no pano de fundo do conflito social da época e que motorizaram a história da resistência social e sindical ao longo dos anos 90. Em um contexto geral de intensificação do descontentamento, existiram alguns focos de resistência que especificaram a oposição dos docentes à política educacional implementada. Um deles foi o processo de descentralização incentivado pela Lei de Transferência, ao que os sindicatos docentes denunciavam como uma estratégia das políticas neoliberais para compensar a perda de legitimidade do Estado nacional ante sua incapacidade (ou falta de vontade política) para responder às crescentes demandas sociais e para descomprimir o conflito social e docente ocasionado pelas medidas de ajuste estrutural e de reforma do sistema escolar (MANGO; VÁZQUEZ, 2003). Outro foco da luta foi a Lei Federal de Educação. Os sindicatos docentes a associavam com a tentativa de cristalizar um marco legal que legitimara a reforma educativa neoliberal, assim como com a pretensão de certos setores de “privatizar e mercantilizar” a educação, borrando seu tradicional caráter público e de direito social.
Segundo a ótica sindical, as “políticas de desinvestimento” vinculadas aos processos de descentralização educativa não tinham consequências apenas na progressiva segmentação do sistema educativo através de circuitos educativos diferenciados segundo o setor social, mas também impactavam sobre o salário e condições de trabalho dos docentes. Dessa maneira, deveria se somar à fragmentação do sistema educativo a dispersão das situações laborais entre os docentes de um mesmo país e, em consequência, maior injustiça. Assim, o programa de reforma incluía a modificação dos estatutos docentes e como consequência das formas de contratação e regulação do trabalho para o setor: o fantasma da flexibilização laboral, a desregulamentação das relações de trabalho e a perda de estabilidade começou a rondar o setor docente.
A marca inovadora, simbólica e midiática da Carpa Blanca instalou-se fortemente nas práticas de luta do setor e de outros grêmios. Depois da prolífica experiência da Carpa, as modalidades de luta sindical já não seriam as mesmas. Quase todos os grêmios docentes das províncias argentinas incorporaram e articularam com suas já tradicionais estratégias de luta (a greve, a mobilização, a retenção de serviços) práticas de representação e de difusão de suas reivindicações. A partir da contundente repercussão pública do conflito docente e social condensado na Carpa, as formas de protesto se diversificaram, tornaram-se menos convencionais, com maior carga simbólica e mais midiáticas.