CIDADANIA
Expressa um conjunto de direitos e de deveres dos indivíduos e grupos numa determinada ordem político-jurídica. Define-se como um fenômeno histórico, pois se modifica a partir dos processos pelos quais os direitos são reivindicados, formulados e transformados. Tomando a história da Inglaterra como modelo, T. H. Marshall (1967) estabeleceu distinção entre as cidadanias civil, política e social e, ao mesmo tempo, salientou as relações fundamentais entre os três tipos. Segundo o autor, os direitos civis dizem respeito aos direitos individuais, como liberdade de ir e vir, o direito de possuir propriedade, segurança e igualdade garantidos pelo sistema legal. Vinculam-se à concepção liberal clássica presente no século XVIII e remetem à luta contra o absolutismo e sua proclamação adveio das revoluções burguesas desse período da história. A cidadania política diz respeito ao direito de participar do poder político pelo voto, mas também à liberdade de organização política e sindical, à liberdade de associação e de reunião. A força dos movimentos dos trabalhadores pelo direito à organização e pelo sufrágio universal no século XIX garantiu a conquista dos direitos políticos e assegurou o direito dos cidadãos de participarem do poder público. Os direitos sociais, conquistados no século XX, colocaram em pauta o compartilhamento da herança social com acesso universal ao bem estar social. Muito contribuem para a adoção da cidadania social as teorias socialistas e o ideal de igualdade como bem coletivo. Para José Murilo de Carvalho (1996), o esquema interpretativo de Marshall recebeu inúmeras críticas, como se o autor tivesse tomado o caso inglês como universal, mas, segundo esse autor, as críticas contribuíram para avanços importantes no estudo do conceito. O esquema cronológico de Marshall não serve para todas as nações, mas aponta para a necessidade de estudos comparativos e para a complexidade da questão. O que se pode assinalar é que a cidadania é o resultado de práticas sociais e conjunturas históricas, não podendo ser considerada pronta e acabada. Um aspecto importante da cidadania, derivado da natureza histórica, é que a luta pelos direitos sempre se deu, de acordo com José Murilo de Carvalho, dentro das fronteiras geográficas e políticas do Estado-nação e que data da Revolução Francesa de 1789. As pessoas se tornavam cidadãs à medida que passavam a se sentir parte de uma nação e de um Estado. Da cidadania como a conhecemos fazem parte então a lealdade a um Estado e a identificação com uma nação. (CARVALHO, 2002, p.12). Mas, salienta o autor, as duas coisas nem sempre aparecem juntas. Em alguns países, o processo de difusão dos direitos se deu a partir da ação estatal, em outros, pela ação dos próprios cidadãos. No Brasil, o modelo de Marshall não se aplica, pois os direitos sociais, após o movimento de 1930, foram incluídos e direcionados aos trabalhadores urbanos com carteira assinada, não se estendendo a todos os cidadãos, o que levou Santos (1977) a conceber o conceito de cidadania regulada. Ou seja, os direitos sociais estabelecidos pelo estado antecederam aos direitos civis e políticos conquistados no período de 1945 a 1964. A ditadura militar, no Brasil, cerceou os direitos civis e políticos e expandiu os direitos sociais com a unificação e a universalização da previdência e a criação do Funrural com objetivo de obter apoio da população. Esse fato demonstra que não se pode identificar cidadania com democracia. Embora a segunda não exista sem a primeira, a cidadania pode existir sem democracia. Historicamente, a forte desigualdade social dificultou a ampliação da cidadania no Brasil. Segundo Bryan R. Roberts, o dilema exposto por Marshall demonstrou: de um lado, a igualdade humana essencial, implícita na condição de membro de pleno direito de uma comunidade, isto é, a cidadania, e de outro lado a desigualdade social resultante das disparidades de poder e do funcionamento da economia de mercado. (ROBERTIS, 1997, p. 6 e 7) Assinala ainda o autor que se o mercado ao mesmo tempo reforça os direitos individuais como de propriedade e de trabalho, por outro lado gera disparidades de riqueza, destrói solidariedades e aumenta a insegurança econômica. Esse tipo de dilema colocou a necessidade da intervenção positiva do estado, ou seja, a constituição do Estado de bem estar social, procurando assegurar educação, saúde, habitação e outros direitos para os seus cidadãos. Nos países mais desenvolvidos, foram constituídos diferentes tipos de Estado de Bem Estar Social que garantiram a possibilidade de inclusão social aos seus cidadãos até os fins dos anos 1970, quando da crise do Estado-Providência, da implantação do modelo neoliberal e da globalização da economia. No Brasil, as consequências da crise do final do séc. XX foram impactantes, criando um cenário de incertezas e de aprofundamento da exclusão social. Políticas sociais mais efetivas têm como objetivo minimizar os efeitos da desigualdade social e promover a redistribuição de renda e suas consequências repercutem sobre os direitos civis e políticos. Mas, para além da noção de cidadania tal como formulada por Marshall com forte vinculação às classes sociais, no final dos anos 1960 e na década seguinte, novos atores eclodiram na cena social de diferentes países reivindicando o direito a ter direitos. Protagonizaram ações no sentido de uma cidadania mais participativa, plural, nas quais as questões da subjetividade, da identidade e da diferença constituíssem um marco na formação da cidadania como emancipação e não como regulamentação. De acordo com Boaventura de Souza Santos, os novos movimentos sociais denunciaram os excessos de regulação da modernidade e estabeleceram um novo paradigma social menos fundamentado na riqueza e no bem estar material e mais na cultura e na qualidade de vida. A novidade dos novos movimentos sociais não reside na recusa da política, mas, ao contrário, no alargamento da política para além do marco liberal da distinção entre Estado e sociedade civil (SANTOS, 1994, p. 226). Os movimentos feministas, ecológicos, pacifistas, étnicos levantaram a bandeira do direito à diferença e do reconhecimento do outro. O direito à informação e o acesso aos bens simbólicos, à sexualidade, à reprodução e ao meio ambiente. A luta das mulheres ressignificou a relação entre a esfera pública e a privada e o fez no sentido de explicitar que toda a relação de poder, de dominação, de opressão é na realidade uma relação política. A construção da cidadania se inscreve na tensão permanente entre os direitos individuais e coletivos, entre o princípio da igualdade e o direito à diferença, entre direitos e responsabilidades. O que se conclui é que a construção da cidadania requer participação ativa de todos os grupos que compõem uma comunidade cívica, num processo sempre renovado da luta por direitos.