CINEMA E EDUCAÇÃO

Autores/as: ADRIANA FRESQUET

Trata-se de uma aproximação de potência pedagógica incomensurável. Quando acontece na escola e supera o formato instrumental, ela propicia o encontro do cinema com a infância e com a adolescência acentuando a intensidade do mesmo. Projetar filmes para ensinar conteúdos tem sido uma prática relativamente recorrente nas últimas décadas e ela ainda conserva alguma força, mas pensar esta como a única forma de articulação entre o cinema e educação seria minimizar suas possibilidades, cujas origens se remontam à década de 20 (DUARTE, 2002; TEIXEIRA & LOPES, 2003; FRANCO, 2004). Para Alain Bergala (2006), o cinema estabelece uma relação de alteridade com a escola, ele se situa como um estrangeiro que provoca a instituição com o ato criativo, alterando rotinas de espaço e tempo. Esse gérmen de anarquia é condição fundamental para “fazer arte” dentro e fora escola, já que o encontro entre cinema e educação pode ter como cenário diversos outros espaços (cinematecas, centros culturais, hospitais, ONGs, presídios, asilos, etc.). Embora o objetivo do cinema não seja educacional, é possível aprender, desaprender e reaprender (FRESQUET, 2009) a partir de alguma experiência do cinema (XAVIER, 1983), por mais simples que ela for (análise crítica ou criativa de filmes, exercícios de introdução à história ou à linguagem cinematográfica, leituras e releituras, produções audiovisuais). Sua potência de afetação pode atingir contundentemente aos espectadores/realizadores e continuar a ter efeitos pedagógicos, estéticos e políticos ao logo do tempo. Para Serge Daney, importante crítico de cinema, o professor deve virar um passador (passeur), isto é, personalizar as escolhas daquilo que quer transmitir do cinema, deve fugir de qualquer neutralidade, doando algo de si, “arriscando”, como quem arrisca sua própria vida acompanhando a quem aprende a subir uma montanha ou cruzar um rio a nado (BERGALA, 2006). Muitas biografias e entrevistas de reconhecidos cineastas apresentam o cinema como um encontro de decisiva constituição subjetiva (François Truffaut, Nelson Pereira dos Santos, Glauber Rocha, Abbas Kiarostami, etc.).

É importante multiplicar e diversificar as formas desse possível encontro: oferecer um amplo leque de filmes de diferentes épocas e gêneros, em particular desse cinema que não é fácil encontrar em locadoras ou no circuito comercial; criar cineclubes, promover atividades para estudantes e professores nas salas de cinema e levar o cinema, através dos seus filmes, nas salas de aula, salas de espera, enfermarias ou recintos de reclusão; desenvolver propostas de exercícios, experimentações com os recursos que hoje são cada vez mais acessíveis técnica e economicamente; projetar cinema mudo no pátio, nos recreios; criar pequenas cabines nas bibliotecas…  Aprender a ver cinema é aprender a ver o outro, configurar novos encontros entre o eu e o mundo. Um “outro” que vem de outros espaços e outros tempos e descobrir que existem infinitos olhares para vê-los. Aprender a ver e fazer cinema significa também sensibilizar o intelecto, restaurar o valor da memória e da imaginação, da ativação do afeto e das sensações no ato de aprender. Encorajar o fazer pressupõe ainda aproximar o professor e o estudante do artista, promover o diálogo e o encontro entre os atores da educação e do cinema para fazer emergir a arte. Quebrar as fronteiras disciplinares e institucionais e esfumar tudo o que separa a infância da arte, já que o que inaugura a arte é o que inaugura a infância afirma Bartolomeu (Campos de Queirós, 2010). O cinema pode ser pensado, inclusive, como um verdadeiro alimento. Como tal, ele possui alguns temperos que particularizam o seu sabor: o tempo e espaço da dúvida, que se renova movimentando uma busca permanente; a criatividade que se libera das amarras dos modos de ser legitimados socialmente; contagiar o entusiasmo – segundo Orson Welles, a única coisa importante que um professor pode fazer (BOGDANOVICH, 1992) –; o faz de conta, que anima ao espectador a assistir um filme imaginando as emoções do autor ou que ganha coragem de criar (desde um simples plano até um longa-metragem), tão natural às crianças e nem sempre possível ao adulto cheio de certezas.

O grande desafio de estreitar a relação entre o cinema e a educação é favorecer condições para uma revolução. Uma revolução coletiva de alteridade. Uma revolução pacífica, amorosa que, através do trabalho de professores, artistas e profissionais, legitime a autoria das crianças e adolescentes no ato de criação e produção cultural. Trata-se de um grupo social que ainda não tomou (tomamos) consciência de seu poder pelo número e pela força criativa. Inventar formas de aproximação do cinema e a educação dentro e fora do currículo, e inclusive dentro e fora da escola nos anima a um devaneio: o combate ao imperialismo e outras formas de hegemonia econômica e cultural. É quase impossível imaginar hoje uma criança ou adolescente não preferindo um produto da indústria cultural, porque, de fato, não têm outras escolhas.  Quem sabe não venham a ser crianças e jovens os que virem pelo avesso algumas formas de colonialismo, os que fazendo de conta que são cineastas (ou escritores, músicos, pintores, etc.) se antecipem com sua magia e sua verdade a um mundo de mentira sustentado pela lógica do capital. Partir dessa ruína rumo à utopia (BENJAMIN, 2005).

O cinema tem condições de devolver algo da infância às crianças e aos adultos que ainda acreditam que, para criar, é necessário reencontrá-la e mantê-la viva.  Ele pode sensibilizar o professor para se perguntar quem é esse aluno, de onde ele vem, qual a sua cultura e o que ele sonha, para agir como um atravessador que consiga encaminhá-lo na direção dos seus sonhos (CAMPOS DE QUEIRÓS, 2010) e torná-lo protagonista de sua cultura e de seu tempo. Fazer cinema na escola, ou fora dela, é um ato político sobre tudo. É conceber a possibilidade de democratizar a produção da cultura, de promover a divergência e não o consenso homogeneizador quando não dogmático, de fazer diferente, sempre, de criar e não repetir.

Desejo que este verbete não sirva para definir e sim para buscar significados próprios, para inspirar sentidos e formatos que tenham as cores do tempo e lugar dos leitores, do sorriso e dos olhares admirados diante de tudo aquilo que sempre surpreende, porque parece novo, embora proceda de algo tão velho como o próprio mundo, quando é capturado pelas câmeras, em particular por uma criança ou por alguém que não perdeu sua capacidade de fazer de conta.

Bibliografia

BENJAMIN, W. Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Duas Cidades; 34, 2005.

BERGALA, A. L’hipothèse cinema. Petit traité de transmission du cinéma à l’école et ailleurs. Paris: Petit Bibliothèque des Cahiers du Cinéma, 2006.

BOGDANOVICH, P. Isto é Orson Welles: entrevistas. São Paulo: Globo, 1992.

CAMPOS DE QUEIROS, B. Entrevistas do Programa de Pós-Graduação em Educação a UFRJ. Belo Horizonte, XV ENDIPE, Espaço Bartolomeu Campos de Queirós no Café literário Dom Quixote, 23/04/2010, 10 hs. Conversando com Bartolomeu Campos de Queirós sobre literatura, cinema, infância, professor, aluno... Entrevista Adriana Fresquet  (CINEAD/Laboratório de Educação, Cinema e Audiovisual, FE/UFRJ).

DUARTE, R. Cinema & Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.

FRESQUET, A. (Org.). Aprender com experiências do cinema. Desaprender com imagens da educação. Rio de Janeiro: Booklink; UFRJ, 2009.

TEIXEIRA, I. A. C.; LOPES, J. S. M. (Orgs.). A escola vai ao cinema. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

XAVIER, I. (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.