CIVILIZAÇÃO DOS PROFESSORES
Refere-se ao processo de transformações históricas da atividade docente observado nas mudanças das relações professores e alunos, e nas mudanças sociais de modo geral, rumo a uma sociedade civilizada numa dinâmica processual. Esse processo compreende a sociogênese da docência no movimento de institucionalização da profissão desde o século XIX e a psicogênese do que constitui o professor na sociedade civilizada. Essas duas categorias de análise social se articulam de modo interdependente como proposta de estudos sobre a educação escolar tendo como principal eixo o conceito de processo civilizador desenvolvido pelo sociólogo Norbert Elias (1993), ou seja, evolução do comportamento humano rumo à substituição da autorregulação instintiva para a autorregulação psíquica. A alteração no comportamento social fundado no aumento do autocontrole em detrimento da coerção externa se fez numa longa duração histórica pela monopolização da violência pelo Estado no século XVI sendo que, desde o século XIX, as sociedades ocidentais se autodenominam civilizadas e elegeram o comportamento civilizado como atitude desejável das relações humanas. Constata-se, nesse processo, o recrudescimento do estranhamento e do repúdio da prática da violência no trato social e, portanto, cada vez mais a ampliação das tensões entre pacificação e violência no âmbito da sociedade. Desse modo, o processo de civilização dos professores integra a dinâmica civilizadora mais ampliada das relações entre os indivíduos e, para explicar esse movimento, faz-se necessário articular os estudos sobre as alterações psíquico-culturais do padrão de comportamento dos professores (psicogênese) com a análise das mudanças da estrutura da escola como figuração social (sociogênese). O conceito de escola como figuração pressupõe o entendimento da sociedade como organização de indivíduos interdependentes. Quanto mais se complexifica a divisão do trabalho, mais se ampliam as relações de interdependência entre os indivíduos e/ou grupos sociais aumentando a diversidade de figurações humanas. O que se observa é que as sociedades urbano-industriais, que exigem alto nível de autocontrole, demandam espaços especializados de preparação das crianças para a vida adulta. Desse modo, a expansão da escola pública, no século XIX, é parte do movimento em que a educação familiar torna-se insuficiente para a dinâmica civilizatória das sociedades ocidentais. Assim, a institucionalização da escola para toda a população se fez integrada aos movimentos de estabelecimento das nações e governos constitucionais numa ampla rede de interdependência entre famílias, gestores, representantes políticos, empregadores, trabalhadores, professores, alunos, etc. num processo de permanente tensionamento. Essa característica é devido à especificidade humana de interdependência fundamental uns dos outros, fazendo com que os indivíduos agrupem-se na forma de variadas figurações, também interdependentes, como modo de se orientarem no mundo. Contudo, a própria condição de interdependência humana é foco de tensão, de modo que toda relação humana é relação de poder cujo equilíbrio depende da posição ou função que um indivíduo ou grupo exerce sobre o(s) outro (s). Para compreender as tensões entre indivíduos e/ou grupos, é fundamental investigar as mudanças nas relações de interdependência. Num processo de longa duração histórica, podemos identificar mudanças nas relações de interdependência entre professores e alunos. Essa temática está diretamente vinculada com as alterações nas relações geracionais, mas também nas relações de gênero, origem social e étnico-racial. Quanto às relações geracionais, temos um tema peculiar que é o alto nível de dependência das crianças em relação aos adultos, no processo de se tornarem adultos. Contudo, as relações de interdependência entre crianças e adultos têm sofrido significativa alteração nos últimos séculos, ou seja, o poder quase incontestável de adultos (como pais e professores) sobre as crianças (filhos, alunos) e as práticas violentas e autoritárias de submissão e sujeição das crianças aos mandos dos adultos são cada vez menos frequentes. Elias (1998) demonstra historicamente a alteração das funções das crianças para os adultos, portanto interferindo nas relações de interdependência, como integrante do processo civilizador. A intensificação do desenvolvimento do comportamento adulto de previsão e autocontrole desde o século XVI envolveu melhor demarcação do comportamento adulto e do infantil e ampliação da percepção de cuidados e necessidades especiais das crianças. Elias (1998) observa em relação aos estudos de Philippe Ariès sobre o descobrimento da infância nos séculos XVI-XVIII que não dizem respeito apenas aos progressos de novos sentimentos e conhecimentos sobre as crianças, mas a descoberta da infância vincula-se ao fato de os adultos darem-se conta de sua relativa autonomia no processo de tornarem-se adultos. As tensões daí advindas envolveram muitas inovações em curso: mudanças nas relações afetivas entre crianças e adultos; alteração da posição da criança no meio sócio-familiar; exigência de maior autocontrole do adulto no trato com a criança; maior participação das crianças no mundo adulto e nas decisões sociais; produção de prescrições normativas quanto aos diretos das crianças, regulamentação do trabalho infantil, direito à escola, etc., sempre com ênfase na sua proteção. Nesse contexto, a institucionalização da escola pública, e portanto da profissão docente, é parte do processo civilizador num aspecto fundamental: a elaboração da função docente (adulto) em relação à função discente (crianças e jovens). Como integrante da elaboração da função docente, apresentam-se fatores como formação profissional, competência, regulamentação da função de funcionário público e as condições de trabalho; no caso da função discente, destacam-se as condições de estudo e o desempenho. Ao longo do processo histórico de desenvolvimento da educação escolar, constatam-se mudanças significativas nas dinâmicas de interdependência que fazem a escola uma figuração, levando-se em consideração a melhoria das condições de formação, introdução de formas colegiadas e democráticas de gestão da escola, organização política da categoria. Por sua vez, alteraram-se as relações entre professores e alunos na direção de diminuição da violência física como modo de resolução de conflitos e introdução de outros procedimentos de conduta pedagógica. Eventos como a abolição da palmatória e adoção dos castigos morais; a introdução de novos objetos escolares e métodos de aprendizagem com apelo a maior participação dos alunos no processo ensino-aprendizagem; as renovações do espaço físico e da estrutura curricular voltada às ciências e educação estética consolidaram, de modo geral, a função civilizadora da escola. Ou seja, a adoção de relações civilizadas entre alunos, professores, famílias, políticos, etc. como desejável para a ordenação social. Contudo, permanecem as tensões entre violência e pacificação tanto na dimensão da organização da escola como da relação entre professores e alunos. Para ampliarmos nosso entendimento sobre a questão, podemos interrogar sobre a direção da alteração nas relações de interdependência entre os sujeitos envolvidos com a escola, numa perspectiva de discutir o redimensionamento das relações de poder. Isso pode ser plenamente observado no caso da alteração no equilíbrio de poder entre adultos e crianças, inclusive com a ampliação das funções das crianças e jovens na figuração sócio-familiar-escolar. Mas também o mesmo pode se observar quanto às mudanças na dinâmica de interdependência nas relações de gênero (conquista de direitos pelas mulheres e homossexuais), nas relações raciais (políticas inibidoras do preconceito racial) bem como nas relações entre classes sociais (com alteração da distância entre ricos e pobres). Essas alterações se fazem rumo à democratização das relações e, portanto, na direção do equilíbrio das relações de poder e, como toda alteração de relação de poder, o processo se mostra bastante tenso. No caso das relações entre professores e alunos, tem ocorrido o mesmo, ou seja, alterações das funções docentes e discentes no curso do processo civilizador.