EDUCAÇÃO E TRATADOS DE LIVRE COMÉRCIO

Autores/as: MYRIAM FELDFEBER

O livre comércio constituiu um dos pilares fundamentais para a expansão e consolidação do capitalismo. Depois da queda do comércio internacional produzida no período compreendido entre as duas guerras mundiais, as principais potências mundiais realizaram importantes esforços para estabilizar a economia internacional e promover o crescimento do comércio, dentre eles, a celebração, em 1948, do GATT, acrônimo de General Agreement on Tariffs and Trade (Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio), acordo multilateral que incluía a redução de tarifas aduaneiras e outras barreiras ao comércio internacional.

Atualmente, a instituição que regula a aplicação das normas vinculadas ao Livre Comércio é a Organização Mundial do Comércio (OMC), que começou a funcionar em 1995, como resultado das rodadas de negociação celebradas no marco do GATT. Trata-se de umamudança significativa, já que os acordos da OMC, que são de cumprimento obrigatório para os países-membro, expandem as regras do livre mercado: o Acordo relativo aos aspectos da propriedade intelectual relacionados com o comércio (ADPIC, TRIPS em inglês), o Acordo sobre as medidas em matéria de inversões relacionadas com o comércio de bens (TRIMS) e o Acordo Geral sobre o comércio de serviços (AGCS, GATS em inglês), que inclui a educação entre os serviços comercializáveis.

Um tratado de livre comércio (TLC) é um acordo entre estados nacionais (que pode ser regional ou bilateral) para regular e expandir o mercado de bens e serviços entre os países participantes. Existe uma grande variedade de acordos, embora todos contemplem, no mínimo, a eliminação ou diminuição substancial das tarifas. Esses acordos devem reger-se pelas regras da OMC.

Entre os tratados em nível regional, podemos mencionar o Tratado de Livre Comércio da América do Norte (TLCAN), o Acordo de livre comércio entre os países da América Central e Estados Unidos – CAFTA (Central American Free Trade Agreement)  e a proposta fracassada de criação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) promovida no Processo de Cúpula das Américas. Na região, existem outros acordos bilaterais que em geral incluem, além do livre comércio de bens, o comércio de serviços, proteção dos investimentos, direitos de propriedade intelectual, compras públicas, entre outros.

Os TLCs geralmente são negociados de costas para a sociedade, a grande maioria dos cidadãos desconhece tanto as discussões e negociações prévias como os acordos que se estabelecem e as consequências dos mesmos sobre suas vidas cotidianas (Internacional de Servicios Públicos e Internacional de la Educación, 2000; Aboites, s/d). Por trás da ideia de que a liberalização do comércio permitirá melhorar o nível de vida das sociedades, os TLCs põem em questão a soberania dos Estados e a sua possibilidade de desenvolver políticas públicas para garantir os direitos dos cidadãos.

Livre comércio e educação – Segundo a OMC, o AGCS reconhece expressamente o direito dos Membros a regulamentar o fornecimento de serviços com o fim de alcançar os objetivos de sua política nacional. O Acordo estabelece um marco de normas para assegurar que os regulamentos de serviços sejam administrados de maneira razoável, objetiva e imparcial e não constituam obstáculos desnecessários ao comércio. O AGCS classifica os serviços em suas listas conforme o sistema da ONU, em 12 setores que se subdividem em 160 categorias diferentes. Em termos econômicos, os serviços são considerados produtos intangíveis, que geralmente se consomem ao mesmo tempo em que se produzem, por  exemplo, os serviços que presta um médico ou um educador.

Segundo o AGCS, os modos de fornecimento transnacional de serviços são quatro: o comércio transfronteiriço; o consumo no estrangeiro, a presença comercial e a presença de pessoas físicas. O fornecimento transfronteiriço abrange o fluxo de serviços do território de um membro ao território de outro membro. O consumo no estrangeiro refere-se às situações em que um consumidor de serviços se desloca ao território de outro país membro para obter o serviço. A presença comercial implica que um provedor de serviços de um membro estabelece uma presença no território de outro membro, mediante a aquisição de propriedade ou arrendamento de locais, com o fim de fornecer um serviço. A presença de pessoas físicas consiste no deslocamento de pessoas para prestar um serviço.

Os princípios de “nação mais favorecida” e de “trato nacional” na comercialização dos serviços estabelecem que os países não podem, por regra geral, estabelecer discriminações entre seus diversos interlocutores comerciais e devem outorgar  um trato igualitário tanto aos fornecedores nacionais como aos estrangeiros.

O  princípio de “trato nacional” em questões relativas às políticas públicas e aos serviços sociais e culturais implica que cada país deve dar o mesmo trato a qualquer iniciativa social, educativa ou cultural, seja esta nacional ou estrangeira. Sendo excetuados aqueles  serviços “fornecidos em exercício de faculdades governamentais”, isto é, os serviços que não se forneçam em condições comerciais nem em concorrência com um ou vários fornecedores de serviços. No caso da educação, na medida em que existem serviços educacionais não fornecidos pelo governo, a educação não entra dentro dessa categoria, portanto fica incluída dentro dos setores passíveis de serem abertos ao livre comércio (FELDFEBER; SAFORCADA, 2005).

No caso do comércio de serviços educacionais, as principais barreiras identificadas não são tarifárias: a restrição na hora de outorgar permissões aos fornecedores estrangeiros; as condições de nacionalidade na hora de contratar professores; as subvenções aos estabelecimentos nacionais; a existência de “monopólios” públicos; a proibição de fornecer serviços educacionais para empresas estrangeiras; a proibição a empresas estrangeiras de outorgar títulos oficiais; medidas que exigem a existência de um sócio local, entre outras (DIAS apud VERGER, 2005).

Mesmo quando alguns países, por exemplo, Brasil e Argentina, decidiram não incluir a educação como serviço comercializável nos tratados de Livre Comércio e nas rodadas de negociação da OMC, os processos de mercantilização da educação, em especial no nível superior, constituem um dado impossível de negligenciar na atual configuração dos sistemas educacionais.

A partir da perspectiva dos TLC, a educação não pode ser considerada como um direito da cidadania. A mercantilização e a redução do fenômeno educativo à esfera individual vêm servindo como veículo para operar uma despolitização da educação, o que constitui uma avançada tardia sobre um dos últimos remanescentes do Estado de Bem-estar.

Bibliografia

ABOITES, H. El tratado de libre comercio de América del norte y su impacto en la educación mexicana (1992-2000). In: LÓPEZ ZAVALA (ed.) Educación y cultura global: valores y nuevos enfoques educativos en una sociedad compleja. México: SEPyC, 2002.

FELDFEBER, M.; SAFORCADA, F. OMC/ALCA y educación: una discusión sobre ciudadanía, derechos y mercado en el cambio de siglo. Buenos Aires: Ediciones del Instituto Movilizador de Fondos Cooperativos, 2005. (Cuadernos de Trabajo, n. 58).

INTERNACIONAL DE SERVICIOS PÚBLICOS e INTERNACIONAL DE LA EDUCACIÓN. Grandes expectativas:el futuro del comercio de servicios., julio de 2000. Disponível em: < http://www.ei-ie.org/gats/file/(2000)%20EI-PSI%20-%20GATS%20-%20Great%20Expectations%20-%20The%20Future%20of%20Trade%20in%20Services %20es.PDF>. Acesso em: 13 set. 2010.

VERGER PLANELLS, A. Transformaciones globales y educación pública: el caso del acuerdo general de comercio de servicios de la OMC. Barcelona: Grao, 2005. (Aula de Innovación educativa, nº 141).