EDUCAÇÃO LIBERTÁRIA
Denominação dada às teorias e práticas educacionais formais e não formais produzidas pelo movimento anarquista, tendo em vista a formação da classe trabalhadora e de seus filhos no enfrentamento da sociedade capitalista, visando formar um novo ser humano para uma nova sociedade justa, fraterna e livre.
O anarquismo pode ser caracterizado, de forma breve, como um movimento social que teve suas origens em meados do século dezenove e encontrou sua maior expressão entre os anos de 1860 e 1930, embora tenha ganhado novo fôlego no final do século vinte. Em termos políticos e sociais, o anarquismo constitui-se como crítica à sociedade capitalista, propondo sua superação e a instituição de uma organização social fundada na liberdade e na extinção da propriedade privada, fonte das explorações. Seus principais conceitos são a crítica ao Estado e a proposta de sua destruição; a internacionalização da luta dos trabalhadores contra o capital; a autogestão social; a tática da ação direta, fundando uma democracia efetiva e não representativa; a defesa intransigente da liberdade de cada um e de todos em uma comunidade. Os anarquistas sempre deram muita importância à questão da educação, ao tratar do problema da transformação social: não apenas à educação dita formal, aquela oferecida nas escolas, mas também àquela dita informal, realizada pelo conjunto social e daí sua ação cultural através do teatro, da imprensa, seus esforços de alfabetização e educação dos trabalhadores, seja através dos sindicatos seja através das associações operárias. Foi com relação à escola, porém, que vimos os maiores desenvolvimentos teóricos e práticos no sentido da constituição de uma educação libertária. Os esforços anarquistas nessa área principiaram com uma crítica à educação tradicional, oferecida pelo capitalismo, tanto em seu aparelho estatal de educação quanto nas instituições privadas normalmente mantidas e geridas por ordens religiosas. A principal acusação libertária diz respeito ao caráter ideológico da educação: procuram mostrar que as escolas dedicam-se a reproduzir a estrutura da sociedade de exploração e dominação, ensinando os alunos a ocuparem seus lugares sociais pré-determinados. A educação assumia, assim, uma importância política bastante grande, embora ela se encontrasse devidamente mascarada sob uma aparente e propalada neutralidade. Os anarquistas assumem o caráter político da educação, querendo colocá-la não mais a serviço da manutenção de uma ordem social, mas sim de sua transformação, denunciando as injustiças e desmascarando os sistemas de dominação, despertando nos indivíduos a consciência da necessidade de uma revolução social. Metodologicamente, a proposta anarquista de educação trabalha com o princípio de liberdade, o que abre duas vertentes de compreensão e de ação diferenciadas: uma que entende que a educação deve ser feita através da liberdade e outra que considera que a educação deve ser feita para a liberdade; em outras palavras, uma toma a liberdade como meio, a outra, como fim. Tomar a liberdade como meio parece equivocado, pois significaria considerar, como Rousseau e toda a filosofia liberal, que a liberdade seja uma característica natural do indivíduo, posição duramente criticada pelo filósofo e militante anarquista Mikhail Bakunin. Por outro lado, equivale também à metodologia das pedagogias não-diretivas, alicerçadas na obra do mesmo Rousseau (Emílio ou da Educação), e consolidadas nos esforços escolanovistas, delas diferenciando-se apenas nos pressupostos políticos, mas sem conseguir diferentes resultados práticos além daquela suposta liberdade individualizada característica das perspectivas liberais. Tomar, de outro modo, a pedagogia libertária como uma educação que tem na liberdade o seu fim pode levar a resultados bastante diferentes. Se a liberdade, como queria Bakunin, é conquistada e construída socialmente, a educação não pode partir dela, mas pode chegar a ela. Pedagogicamente, a liberdade deixa de ser um princípio, o que afasta a pedagogia anarquista das pedagogias não-diretivas; por mais estranho que possa parecer aos olhos de alguns, a pedagogia anarquista precisa partir do princípio de autoridade. A escola não pode ser um espaço de liberdade em meio à coerção social; sua ação seria inócua, pois os efeitos da relação do indivíduo com as demais instâncias sociais seriam muito mais fortes. Partindo do princípio de autoridade, a escola não se afasta da sociedade, mas insere-se nela. O fato é, porém, que uma educação anarquista coerente com seu intento de crítica e transformação social deve partir da autoridade não para tomá-la como absoluta e intransponível, mas para superá-la. O processo pedagógico de uma construção coletiva da liberdade é um processo de desconstrução paulatina da autoridade. Tal processo é assumido positivamente pela pedagogia libertária como uma atividade ideológica; posto que não há educação neutra, posto que toda educação fundamenta-se em uma concepção de ser humano e em uma concepção de sociedade, trata-se de definir de qual ser humano e de qual sociedade estamos falando. Trata-se de educar um ser humano comprometido não com a manutenção da sociedade de exploração, mas sim com o engajamento na luta e na construção de uma nova sociedade. Trata-se, em outras palavras, de criar um indivíduo desajustado para os padrões sociais capitalistas. A educação libertária constituiu-se, assim, em uma educação contra o Estado, alheia, portanto, aos sistemas públicos de ensino. Os anarquistas, coerentes com sua crítica ao Estado, jamais aceitaram essa educação oferecida e gerida por ele; é por isso que, na perspectiva anarquista, a única educação revolucionária possível é aquela que se dá fora do contexto definido pelo Estado, sendo esse afastamento mesmo já uma atitude revolucionária. A proposta é que a própria sociedade organize seu sistema de ensino, à margem do Estado e sem a sua ingerência, definindo ela mesma como aplicar seus recursos e fazendo a gestão direta deles, construindo um sistema de ensino que seja o reflexo de seus interesses e desejos. Dentre as várias experiências de escolas libertárias, podemos destacar: o período em que o pedagogo e militante socialista Paul Robin esteve na direção do Orfanato Prévost em Cempuis, França (1880-1894), que serviu para consolidar a ideia de uma educação integral; a escola-comunidade de La Ruche, criada por Sébastien Faure, em Rambouillet, França (1904-1917); a escola-livre Paideia, criada em Mérida (Espanha), em 1978, por Josefa Martin Luengo e um grupo de educadores, em operação ainda hoje; e, pelas influências que exerceu, inclusive no Brasil nas primeiras décadas do século vinte, a Escuela Moderna de Barcelona (1901-1905), criada por Francesc Ferrer i Guàrdia. O mote progressista nas discussões educacionais contemporâneas é a defesa da escola pública, garantida pelo Estado. O anarquismo insiste no fato de que seja possível uma escola pública não-estatal, ou pelo menos a tomada do espaço público na escola pública, como lugar de luta conta o Estado.