ESCOLAS MULTISSERIADAS
As escolas com turmas multisseriadas existem no Brasil desde o período imperial, quando se aplicava o método mútuo ou do ensino por meio da monitoria , na instrução elementar, modelo importado da Inglaterra. Naquele país, o método foi criado para atender às exigências da rápida expansão do ensino público elementar e para atender às necessidades do processo de industrialização. Desde o Século XIX, na França, já era possível identificar um modelo semelhante ao que hoje se denomina de escola rural organizada com turma multisseriada ou unidocente (AZEVEDO, 2010). Essas escolas reúnem estudantes de várias séries e níveis em uma mesma sala de aula, independente do número de professores responsáveis pela turma. Embora possa acontecer de uma escola ou turma ser multisseriada e ter mais de um professor, no meio rural, elas contam com apenas um professor como responsável pela condução do trabalho pedagógico, sendo, portanto, unidocentes.
Nos estudos que realizamos através do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação do Campo na Amazônia (GEPERUAZ), vinculado ao instituto de Ciências da Educação da Universidade Federal do Pará, temos identificado uma ambiguidade característica da dinâmica das escolas com turmas multisseriadas: o quadro dramático de precarização e abandono em que as escolas se encontram, reflexo do descaso com que tem sido tratada a escolarização obrigatória ofertada às populações do campo; e, ao mesmo tempo, as possibilidades construídas pelos educadores, gestores e sujeitos do campo, no cotidiano das ações educativas, evidenciando situações criativas e inovadoras que desafiam as condições adversas que configuram a realidade existencial dessas escolas. (HAGE, 2005)
Uma das características mais marcantes das escolas com turmas multisseriadas localizadas no meio rural é a precariedade de infraestrutura, pois,em muitas situações, elas não possuem prédio próprio e funcionam na casa de um morador local ou em salões de festas, barracões, igrejas, etc.; em prédios muito pequenos, construídos de forma inadequada, que se encontram em péssimo estado de conservação, causando risco aos estudantes e professores, fortalecendo o estigma da escolarização empobrecida e abandonada.
O trabalho docente nas escolas com turmas multisseriadas se configura pela sobrecarga de atividades, instabilidade no emprego e angústias relacionadas à organização do trabalho pedagógico. Nessas escolas, um único professor atua em múltiplas séries concomitantemente, reunindo estudantes da pré-escola e dos anos iniciais do ensino fundamental em uma mesma sala de aula; sendo obrigado a assumir outras funções, além da docência, ficando responsável pela confecção e distribuição da merenda, limpeza da escola, realização da matrícula e demais atividades de secretaria e de gestão. Em sua maioria, os professores das escolas com turmas multisseriadas são temporários e, por esse motivo, sofrem pressões de gestores públicos, políticos e empresários locais, encontrando-se submetidos a uma intensa rotatividade, ao mudar constantemente de escola e/ou de comunidade. Esses profissionais enfrentam muitas angústias relacionadas à organização do trabalho pedagógico, pois sendo unidocentes, realizam um trabalho solitário face ao isolamento que vivenciam e ao pouco preparo para lidar com a heterogeneidade de idades, séries, ritmos de aprendizagem, entre outras, presentes nessas escolas ou turmas. Sem uma compreensão mais abrangente desse processo, muitos professores e professoras das escolas com turmas multisseriadas organizam o seu trabalho pedagógico sob a lógica da seriação, desenvolvendo suas atividades educativas referenciados por uma visão de ajuntamento de várias séries, que os obriga a elaborar tantos planos de ensino e estratégias de avaliação diferenciadas quanto forem as séries com as quais trabalham, envolvendo estudantes da pré-escola e Ensino Fundamental concomitantemente.
O trabalho com muitas séries e faixa etária, interesse e nível de aprendizagem variado dos estudantes impõe dificuldades aos professores para realizar o planejamento curricular. Nessa situação, os professores são pressionados a utilizar os livros didáticos que circulam nessas escolas, muitas vezes antigos e ultrapassados, como única fonte para a seleção e organização dos conhecimentos, sem atentar para as implicações curriculares resultantes dessa atitude, uma vez que esses manuais não valorizam as crenças, valores, símbolos, conhecimentos, padrões de referência e sociabilidade das populações do campo; e reforçam uma compreensão universalizante e homogeneizadora de currículo, que sobrevaloriza a concepção urbanocêntrica de vida e de desenvolvimento.
O fracasso escolar e a defasagem idade-série são elevados nessas escolas, face às condições em que o ensino e a aprendizagem se efetivam e às atividades de trabalho infanto-juvenil, pois os estudantes e professores enfrentam muitas situações adversas como: as longas distâncias percorridas para chegar à escola, que podem durar até oito horas diárias; a oferta irregular da merenda; o acúmulo de funções assumidas pelos professores, que os impede de realizar um atendimento qualificado aos estudantes, especialmente aos que não sabem ler e escrever e demandam ação pedagógica quanto à apropriação da leitura e da escrita; a realidade do trabalho infanto-juvenil e, em alguns casos, a prostituição de meninas adolescentes e jovens.
A falta de acompanhamento pedagógico das Secretarias de Educação também é muito comum em relação às escolas com turmas multisseriadas, o que faz com que os professores, pais e integrantes da comunidade se sintam discriminados em relação às escolas urbanas, que têm prioridade absoluta, inclusive em relação à formação dos docentes. Essa situação advém do descaso dos órgãos governamentais para com a educação do meio rural e do pouco investimento na formulação de políticas e propostas pedagógicas específicas para essa realidade.
A existência de um número muito extenso de escolas com turmas multisseriadas no Brasil (49.305 escolas segundo o Censo Escolar de 2009, do INEP), associado à dispersão de localização das mesmas e o atendimento reduzido do número de estudantes por escola têm levado os gestores públicos a adotar, como estratégia mais frequente, a política de nucleação vinculada ao transporte escolar, resultando no fechamento das escolas nas pequenas comunidades rurais e transferência dos estudantes para escolas localizadas em comunidades rurais mais populosas (sentido campo-campo), ou para a sede dos municípios (sentido campo-cidade).
Essas particularidades em seu conjunto fortalecem uma visão negativa e depreciativa com relação à escola rural, entretanto, a complexidade que configura a realidade e os desafios que enfrentam os educadores e estudantes das escolas com turmas multisseriadas têm demandado a necessidade de serem criadas possibilidades de intervenção e propostas de solução para essa problemática, que sejam contextualizadas, viáveis e que atendam às expectativas do poder público, dos movimentos e organizações sociais, dos órgãos de fomento e particularmente dos educadores, pais e estudantes das escolas multisseriadas (HAGE; ANTUNES-ROCHA, 2010)