ÉTICA
Campo do pensamento filosófico que, a partir do estudo do caráter dos homens, de sua conduta moral, dos costumes e normas sociais, busca princípios norteadores para uma convivência justa, harmoniosa e cooperativa. Distinguindo-se da moral constituída, a postura ética caracteriza-se por reflexão e escolha, pressupondo a liberdade de divergir, negar, renovar. Embora esteja presente em todos os agrupamentos humanos, documentada nos relatos do mundo vivido, nasce, enquanto reflexão teórica, no interior do debate público propiciado pela democracia grega, voltando-se a investigar os fundamentos antropológicos e históricos da justiça no indivíduo e na pólis. Para a linhagem de filósofos em que figuram Protágoras, Sócrates, Platão e Aristóteles, a conceituação da virtude enquanto capacidade de vencer o egoísmo e o medo em prol do bem comum é inseparável da indagação das instituições e práticas educativas que regulam a vida coletiva. Em busca da arte de unir os homens em torno de boas normas, os pensadores tematizam duas formas de educação ética. Por um lado, a que se constrói pela exortação e pelo hábito de imitar os modelos virtuosos, nos espaços de vivência comum, entre os quais a narração pública da poesia homérica e a representação teatral. Por outro lado, a que se constrói pelo exame racional dos temas da justiça, do bem, da temperança, perseguindo princípios universais e seguros para a ação reta (JAEGER, 2001). Inaugurado e trilhado por Sócrates no diálogo com os jovens pelo questionamento das verdades estabelecidas, tal percurso integra a si o valor pedagógico do exemplo, na postura do filósofo que prefere a morte a renegar a sua missão (PLATÃO, 1987).
Recolhendo a herança socrática, o debate ocorrido entre os iluministas ao longo do século XVIII em torno da democratização do conhecimento produz projetos para uma instrução pública única, gratuita e universal, com propostas curriculares e metodológicas empenhadas em potenciar a faculdade de analisar, criticar e transformar a realidade do mundo físico e humano. Partindo do pressuposto de que todos os homens podem discernir, no silêncio das paixões, a correta relação entre direitos e deveres, os reformadores identificam na progressão escolar um meio includente e propício para formar cidadãos autônomos, esclarecidos e virtuosos, igualmente críticos dos doutrinarismos religiosos e políticos e da agressividade e individualismo do espírito mercantil. Nessa perspectiva, a escola pública, independente das orientações governamentais e interesses privados, constituiria modelo para a construção de saberes e virtudes, na contramão da sociedade competitiva, da política corrupta, dos discursos autoritários e manipuladores (DIDEROT, 2000; CONDORCET, 2008). Embora os sistemas nacionais de educação implantados ao longo dos séculos XIX e XX tenham integrado as massas populares à cultura pela criação de novas formas de desigualdade educacional e controle ideológico, relegando esses projetos a cartas de intenções, a imagem radiosa de uma convivência humana livre de toda miséria física e espiritual permanece viva no debate teórico e político dos que atuam no campo educacional, influenciando leis, diretrizes públicas, projetos pedagógicos inovadores. No panorama atual, em que as diretrizes mercantis e os valores do individualismo e do consumismo veiculados pela mídia penetram agressivamente na escola, junto aos desafios impostos pela exclusão social e pelo choque dos fundamentalismos religiosos e étnicos, a questão do seu papel ético assume um caráter dramático. Opondo-se tanto aos conservadores que enxergam na crise escolar a desintegração de toda consciência moral, quanto aos relativistas que advogam a dissolução dos imperativos universais nas éticas grupais, amplia-se, entre pesquisadores e profissionais da área, o debate sobre a ética em educação, em torno de alguns temas centrais, tais quais: 1) o caráter democrático da educação pública, para além do acesso universal, na perspectiva de uma formação humana de qualidade, que não mutile a riqueza e variedade das faculdades, experiências e conhecimentos de seus educadores e educandos; 2) os alcances e limites da escola enquanto espaço público privilegiado para o esclarecimento do confronto entre os mecanismos físicos e simbólicos de domínio político e social, e a construção de valores universais, balizas para uma vida digna, segura e livre para todos (GOERGEN, 2001). Tal desafio, que poderia ser sintetizado na máxima kantiana segundo a qual não se deve reduzir o outro a meio para seus próprios fins, exige, por um lado, a efetiva inserção, nos curricula e nos conteúdos e práticas escolares, da pluralidade de crenças, culturas, vivências de grupos e classes e, de outro, a discussão do potencial das políticas e pedagogias inclusivas no combate a todas as formas de desigualdade e discriminação; 3) O papel central que assumem, para uma educação emancipatória, a formação dos professores e suas condições de trabalho e de autonomia intelectual, já que a eles cabe compreender em sua gênese e lógica as várias culturas e interpretações do mundo, com o fim de situar os estudantes em seu contexto sócio-histórico (LUDKE; BOIG, 2004) e prepará-los para a elaboração autônoma de seus próprios pontos de vista e escolhas morais. As orientações produtivistas e mercadológicas predominantes no campo educacional nas últimas décadas acentuam os aspectos conteudistas e pragmáticos do ensino, tendendo a reduzir o professor à função técnica, de mediador entre os saberes limitados e massificados das cartilhas didáticas e as competências operativas resultantes, aferidas por avaliações alheias à realidade concreta das escolas. Tal tendência geral revela-se, em nosso país, na perversa combinação entre deterioração dos salários e das condições de trabalho dos professores, sobretudo na educação básica pública, e o aligeiramento, em seus processos formativos, dos conhecimentos científicos e humanistas, arriscando destituí-los da dimensão intelectual de seu ofício, essencial para a formação teórica, artística e ética dos jovens (FREITAS, 2007).
Como evidencia a expansão das pesquisas acadêmicas e a aglutinação dos movimentos dos educadores em torno dessas questões, o tema da ética torna-se hoje central para decodificar, na perspectiva de superá-la, a contradição inerente à escola contemporânea entre seu papel de reprodutora da economia e cultura dominantes e sua vocação democrática e crítico-utópica, que a inscreve na história dos esforços realizados pelo pensar e agir humano na construção de uma boa vida coletiva.