FRACASSO ESCOLAR

Autores/as: MARIA HELENA SOUZA PATTO

Expressão usada para nomear fenômenos como o baixo rendimento, a repetência e a evasão escolar. Desde o século XIX, quando nascem as ciências auxiliares da educação – sobretudo a Biologia e a Psicologia – as causas desses fenômenos são remetidas a dificuldades individuais do aprendiz, como distúrbios ou deficiências no desenvolvimento físico e sensorial, intelectual e neurológico, emocional e de ajustamento, familiar e cultural. Essa concepção tem antecedentes nos pressupostos da ideologia liberal, sobretudo o que afirma que sucesso social de um indivíduo, grupo, classe ou etnia depende de “aptidões naturais”, ou seja, de capacidades inatas. O documento oficial que inaugura a contemporaneidade, às portas do século XIX, já continha o germe desta visão de sucesso na vida como resultado das diferenças individuais de capacidade: nos termos do  Art. 6 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, “ A lei é a expressão da vontade geral. (…) Todos os cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, cargos e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outra distinção a não ser a de suas virtudes e seus talentos.” É verdade que o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade foi a bandeira do movimento revolucionário francês. É verdade também que a igualdade estava no centro da pauta revolucionária contra a exploração, a tirania e a desigualdade do Antigo Regime. Assim sendo, pode-se afirmar que a nova sociedade nasceu de um projeto político liberal que queria abolir a desigualdade de direitos civis, políticos e sociais instalada no coração da sociedade feudal. (Comparato, 2001). Mas, durante a primeira metade do século XIX, já estava claro que a nova ordem econômica e política contrariava as promessas da Revolução Francesa, pois o novo modo de produção caracterizava-se por relações de trabalho que punham a exploração econômica no centro da vida social e reeditavam a opressão e a desigualdade em novos termos. Ora, uma sociedade que se sustenta na declaração formal de igualdade, mas que gera desigualdade real, vê-se, rapidamente, às voltas com a insatisfação e as várias formas de protesto e de cobrança dos injustiçados. Como explicar esse estado de coisas sem pôr em questão a estrutura social em vigor? Por meio de concepções sobre homem e sociedade que as justifiquem. É assim que as luzes da razão humana, que, segundo os iluministas do século XVIII, desvendariam os segredos da natureza por meio da ciência e a controlariam por intermédio da técnica e assim instalariam a felicidade universal, foram postas a serviço da justificação, ou seja, de interpretações ideológicas da realidade social que, ao invés de desvelá-la em sua essência geradora de desigualdade de direitos, oculta-a, ao responsabilizar os próprios explorados por suas más condições de vida (HOBSBAWM, 2009). Mesmo quando superada a concepção inata das capacidades humanas e das diferenças individuais, sociais e étnicas e a busca de suas origens concentrou-se em fatores ambientais – mesmo então, “meio” ou “ambiente” foram concebidos como naturais, sem referência à sua constituição histórica (BISSERET, 1979). Para fazer justiça, colocando cada um no lugar social que lhe é adequado, acreditava-se que bastava avaliá-las com instrumentos de medida da inteligência, das habilidades específicas e da personalidade. Apesar do questionamento das bases teóricas desses procedimentos, eles continuam presentes no cotidiano escolar. (GOULD, 1991). É somente quando se levam em conta as dimensões econômica (o modo de produção em vigor), social (a estrutura da sociedade) e política (as relações de poder) presentes numa sociedade concreta, cujas características é necessário desvendar, que se pode entender as ideias e instituições. É somente assim que a política educacional e a Escola passam a ser consideradas como instituições sociais que não podem ser compreendidas, quer quanto aos princípios pedagógicos que as norteiam, quer em sua estrutura e funcionamento, se não forem remetidas às dimensões acima mencionadas. O mesmo vale para o cotidiano escolar – o chamado “chão da escola” – caixa de ressonância das relações de trabalho e das relações de poder numa sociedade dividida. É no bojo dessa concepção que as “dificuldades de aprendizagem”, até então localizadas em características individuais e familiares responsabilizadas pelas dificuldades escolares enfrentadas pela maioria das crianças brasileiras – quer porque nunca tiveram acesso à escola, quer porque dela foram expulsas por mecanismos sutis ( como a “evasão”), quer porque se encontram nela, mas não encontram condições de ensino que lhes garanta a aprendizagem de habilidades e conteúdos que cabe à escola ensinar – deixam de ser concebidas como “distúrbios de aprendizagem” e passam a ser nomeadas como “dificuldades de escolarização”, concepção esta que toma a própria política de educação e o próprio cotidiano escolar como principais determinantes do baixo rendimento, da repetência e da evasão escolares. Dizendo de outro modo, não se pode entender as dificuldades escolares de grande contingente de crianças brasileiras sem que se entenda o processo institucional que as produz e a relação desse processo com as características econômicas e políticas da sociedade em que ele se dá. E entre as dimensões que engendram o cotidiano de uma escola é preciso destacar a formação e as condições de trabalho dos educadores e, em estreita relação com o tecnicismo que domina e cega o pensamento educacional brasileiro oficial, a permanência do preconceito racial e de classe que pode estar implícito na legislação e na política educacionais e, de modo mais explícito, na relação professor-aluno, nos conteúdos escolares e entre especialistas (por exemplo, médicos, psicólogos e psicopedagogos) convocados para identificar supostos problemas individuais dos alunos que supostamente “não aprendem”.   Não se pode esquecer que o racismo científico gerado na Europa no século XIX teve forte presença entre intelectuais da Primeira República brasileira. Ao aderirem ao preconceito em moldes científicos e ao insistirem em localizar em indivíduos e grupos as causas de um fracasso que é da educação escolar, esses profissionais reiteram a prática de “culpar a vítima”, recurso antigo, persistente e necessário à permanência das sociedades “democráticas”, como a brasileira, “na qual vivemos ao ritmo de uma das desigualdades econômicas mais revoltantes do mundo.” (CANDIDO, 1995, p.28).

Bibliografia

BISSERET, N. A ideologia das aptidões naturais. In: DURAND, J. C. G. (Org.) Educação e hegemonia de classe: as funções ideológicas da escola. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.  p.30-67.

CANDIDO, A. Para saudar um grande homem. Revista ADUSP, São Paulo, n.4, p. 28-29, out. 1995.

COMPARATO, F. K A afirmação histórica dos direitos humanos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.

GOULD, S. J. A falsa medida do homem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.

HOBSBAWM, E. A era do capital. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2009.