FRACASSO ESCOLAR
Expressão usada para nomear fenômenos como o baixo rendimento, a repetência e a evasão escolar. Desde o século XIX, quando nascem as ciências auxiliares da educação sobretudo a Biologia e a Psicologia as causas desses fenômenos são remetidas a dificuldades individuais do aprendiz, como distúrbios ou deficiências no desenvolvimento físico e sensorial, intelectual e neurológico, emocional e de ajustamento, familiar e cultural. Essa concepção tem antecedentes nos pressupostos da ideologia liberal, sobretudo o que afirma que sucesso social de um indivíduo, grupo, classe ou etnia depende de aptidões naturais, ou seja, de capacidades inatas. O documento oficial que inaugura a contemporaneidade, às portas do século XIX, já continha o germe desta visão de sucesso na vida como resultado das diferenças individuais de capacidade: nos termos do Art. 6 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, A lei é a expressão da vontade geral. (…) Todos os cidadãos, sendo iguais aos seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, cargos e empregos públicos, segundo sua capacidade e sem outra distinção a não ser a de suas virtudes e seus talentos. É verdade que o ideal de liberdade, igualdade e fraternidade foi a bandeira do movimento revolucionário francês. É verdade também que a igualdade estava no centro da pauta revolucionária contra a exploração, a tirania e a desigualdade do Antigo Regime. Assim sendo, pode-se afirmar que a nova sociedade nasceu de um projeto político liberal que queria abolir a desigualdade de direitos civis, políticos e sociais instalada no coração da sociedade feudal. (Comparato, 2001). Mas, durante a primeira metade do século XIX, já estava claro que a nova ordem econômica e política contrariava as promessas da Revolução Francesa, pois o novo modo de produção caracterizava-se por relações de trabalho que punham a exploração econômica no centro da vida social e reeditavam a opressão e a desigualdade em novos termos. Ora, uma sociedade que se sustenta na declaração formal de igualdade, mas que gera desigualdade real, vê-se, rapidamente, às voltas com a insatisfação e as várias formas de protesto e de cobrança dos injustiçados. Como explicar esse estado de coisas sem pôr em questão a estrutura social em vigor? Por meio de concepções sobre homem e sociedade que as justifiquem. É assim que as luzes da razão humana, que, segundo os iluministas do século XVIII, desvendariam os segredos da natureza por meio da ciência e a controlariam por intermédio da técnica e assim instalariam a felicidade universal, foram postas a serviço da justificação, ou seja, de interpretações ideológicas da realidade social que, ao invés de desvelá-la em sua essência geradora de desigualdade de direitos, oculta-a, ao responsabilizar os próprios explorados por suas más condições de vida (HOBSBAWM, 2009). Mesmo quando superada a concepção inata das capacidades humanas e das diferenças individuais, sociais e étnicas e a busca de suas origens concentrou-se em fatores ambientais mesmo então, meio ou ambiente foram concebidos como naturais, sem referência à sua constituição histórica (BISSERET, 1979). Para fazer justiça, colocando cada um no lugar social que lhe é adequado, acreditava-se que bastava avaliá-las com instrumentos de medida da inteligência, das habilidades específicas e da personalidade. Apesar do questionamento das bases teóricas desses procedimentos, eles continuam presentes no cotidiano escolar. (GOULD, 1991). É somente quando se levam em conta as dimensões econômica (o modo de produção em vigor), social (a estrutura da sociedade) e política (as relações de poder) presentes numa sociedade concreta, cujas características é necessário desvendar, que se pode entender as ideias e instituições. É somente assim que a política educacional e a Escola passam a ser consideradas como instituições sociais que não podem ser compreendidas, quer quanto aos princípios pedagógicos que as norteiam, quer em sua estrutura e funcionamento, se não forem remetidas às dimensões acima mencionadas. O mesmo vale para o cotidiano escolar o chamado chão da escola caixa de ressonância das relações de trabalho e das relações de poder numa sociedade dividida. É no bojo dessa concepção que as dificuldades de aprendizagem, até então localizadas em características individuais e familiares responsabilizadas pelas dificuldades escolares enfrentadas pela maioria das crianças brasileiras quer porque nunca tiveram acesso à escola, quer porque dela foram expulsas por mecanismos sutis ( como a evasão), quer porque se encontram nela, mas não encontram condições de ensino que lhes garanta a aprendizagem de habilidades e conteúdos que cabe à escola ensinar – deixam de ser concebidas como distúrbios de aprendizagem e passam a ser nomeadas como dificuldades de escolarização, concepção esta que toma a própria política de educação e o próprio cotidiano escolar como principais determinantes do baixo rendimento, da repetência e da evasão escolares. Dizendo de outro modo, não se pode entender as dificuldades escolares de grande contingente de crianças brasileiras sem que se entenda o processo institucional que as produz e a relação desse processo com as características econômicas e políticas da sociedade em que ele se dá. E entre as dimensões que engendram o cotidiano de uma escola é preciso destacar a formação e as condições de trabalho dos educadores e, em estreita relação com o tecnicismo que domina e cega o pensamento educacional brasileiro oficial, a permanência do preconceito racial e de classe que pode estar implícito na legislação e na política educacionais e, de modo mais explícito, na relação professor-aluno, nos conteúdos escolares e entre especialistas (por exemplo, médicos, psicólogos e psicopedagogos) convocados para identificar supostos problemas individuais dos alunos que supostamente não aprendem. Não se pode esquecer que o racismo científico gerado na Europa no século XIX teve forte presença entre intelectuais da Primeira República brasileira. Ao aderirem ao preconceito em moldes científicos e ao insistirem em localizar em indivíduos e grupos as causas de um fracasso que é da educação escolar, esses profissionais reiteram a prática de culpar a vítima”, recurso antigo, persistente e necessário à permanência das sociedades democráticas, como a brasileira, na qual vivemos ao ritmo de uma das desigualdades econômicas mais revoltantes do mundo. (CANDIDO, 1995, p.28).