INTERDISCIPLINARIDADE

Autores/as: LÚCIA MARIA DE ASSIS

Termo que deriva de disciplina. Disciplina pode significar: (1) obediência às regras e aos superiores; (2) ordem, bom andamento; (3) método, regularidade; (4) ramo do conhecimento, matéria (HOUAISS, 2008). Observa-se uma similaridade entre os quatro sentidos apresentados, uma vez que ao ordenar/organizar o conhecimento/currículo em campos ou áreas do conhecimento, promove-se o seu ordenamento, tornando-o metódico e sujeito às regras de organização previamente definidas. A organização do conhecimento escolar em disciplinas é uma das marcas da era Moderna (séculos XV ao XVIII), caracterizada pela “consolidação dos ideais de progresso e desenvolvimento, que reforçou o pensamento racionalista e individualista, valores burgueses que poriam fim ao universo ideológico feudal, estruturando-se uma nova ordem sócio-político-econômica”. (VICENTINO, 1997, p. 172). Nas artes e nas ciências, os movimentos racionalistas e estruturalistas foram determinantes na reorganização das diferentes áreas do saber em partes menores, em especialidades. Essa maneira de organização dos saberes e das ciências atravessou o tempo e, somente na segunda metade do século XX, emergiu um movimento de reação ao processo de fragmentação dos saberes, fortemente intensificado com o expansionismo industrial e com a disseminação das ideias fordistas. Georges Gusdorf sistematizou a proposta desse movimento e abriu os debates sobre os efeitos da excessiva fragmentação do conhecimento na formação acadêmica (GUSDORF, 1992). No Brasil, o conceito interdisciplinar foi introduzido por Japiassu (1976) e Fazenda (1991). O primeiro aborda o conceito no campo epistemológico e a segunda no campo pedagógico, e ambos consideram a abordagem disciplinar como uma doença que precisa ser superada por meio das práticas interdisciplinares. Concentram as suas análises na necessidade de os sujeitos mudarem as suas atitudes diante do seu objeto de estudos, de modo a abrir o diálogo com as outras áreas/disciplinas. Consideram que somente mediante a comunicação entre os profissionais de várias áreas será possível a concretização do projeto interdisciplinar. Nesse movimento, o termo interdisciplinaridade passa a ser utilizado para expressar um enfoque científico e pedagógico que se caracteriza por buscar, “algo mais do que a justaposição das contribuições de diversas disciplinas sobre o mesmo assunto, e se esforça por estabelecer um diálogo enriquecedor entre especialistas de diversas áreas científicas sobre uma determinada temática” (ASSMANN, 1998, p. 162). O termo também se aplica a problemas, atividades e projetos que ultrapassam a capacidade de uma só área disciplinar. Essa proposta encontrou terra fértil em um tempo de grandes transformações culturais, científicas e técnico-informacionais, em que a organização rígida do conhecimento demonstra sinais de esgotamento.  Para Sousa Santos, na ciência Moderna, “o conhecimento avança por meio da especialização, pois ela está assentada na divisão e classificação do conhecimento para então determinar relações sistemáticas entre o que separou. A pós-modernidade contrapõe essa lógica, pois vê na disciplinarização um limite à reflexão, reprimindo e limitando os profissionais” (SANTOS, 1998, p. 64). Ainda segundo esse autor, “o conhecimento disciplinar tende a ser disciplinado, reprime as tentativas que visem transpor as fronteiras das disciplinas. A excessiva parcelização do saber científico faz do cientista um ignorante especializado” (SANTOS, 1998, p.64). Um outro conceito fundamental que contribui para a compreensão dessa proposta é a transdisciplinaridade como possibilidade de ruptura com as fronteiras disciplinares. Segundo Assmann, a transdisciplinaridade não pretende desvalorizar as competências disciplinares específicas. Ao contrário, “pretende elevá-las a um patamar de conhecimentos melhorados nas áreas disciplinares, já que todas elas devem embeber-se de uma nova consciência epistemológica, admitindo que seja importante que determinados conceitos fundantes possam transmigrar através (trans-) das fronteiras disciplinares” (ASSMANN, 1999, p. 182). Nos anos de 1990, surgiu um movimento de crítica à matriz epistemológica na qual se baseiam as concepções sobre o conhecimento interdisciplinar até então predominantes. Segundo Jantsch e Bianchetti, a interdisciplinaridade vem sendo abordada no âmbito da filosofia do sujeito que decorre de uma perspectiva ligada à filosofia idealista, na qual prevalece a autonomia dos sujeitos pensantes sobre os objetos. Para esses autores, as discussões predominantes remetem a uma “concepção a-histórica do objeto filosófico-científico denominado interdisciplinaridade. Tal concepção caracteriza-se por privilegiar a ação do sujeito sobre o objeto, de modo a tornar o sujeito um absoluto na construção do conhecimento e do pensamento” (JANTSCH E BIANCHETTI, 1997, p.23). As condições objetivas que envolvem o processo de construção do conhecimento não são consideradas, bastando um ato de vontade e determinação dos sujeitos para que ocorra a superação do conhecimento disciplinar. Frigotto reforça os argumentos desses autores ao analisar que “a interdisciplinaridade, de um lado, se apresenta como problema pelos limites do sujeito que busca construir o conhecimento de uma determinada realidade e, de outro, pela complexidade desta realidade e seu caráter histórico” (FRIGOTTO, 2008, p. 31). Para ele, a não atenção aos aspectos históricos “tem conduzido o tratamento das questões relativas à interdisciplinaridade sob uma ótica fenomênica, abstrata, arbitrária” (FRIGOTTO, 2008, p. 38). Para esse conjunto de autores, a abordagem interdisciplinar deve ser entendida como processo histórico no qual é possível a convivência entre a interdisciplinaridade e a especialidade, “dado que o genérico e o específico não são excludentes” (FRIGOTTO, 2008, p. 39).  Apoiados na matriz do materialismo histórico, essa vertente de análise baseia-se no princípio de que a ação dos sujeitos é fortemente influenciada pela dinâmica sociocultural, o que torna a autonomia dos sujeitos relativa. Constata-se, mediante a análise dessas concepções teóricas sobre o conceito e a prática interdisciplinar, que a busca da superação da abordagem fragmentária do conhecimento rumo a uma abordagem interdisciplinar consiste em um desafio a ser enfrentado pelos estudiosos e trabalhadores de todas as áreas do conhecimento, por se tratar de um conceito polissêmico, que admite diferentes abordagens e aplicações. Para o campo específico da educação, a interdisciplinaridade tem um sentido de movimento e de transição de paradigmas com múltiplas possibilidades e dimensões.

Bibliografia

ASSMANN, H. Reencantar a educação. Petrópolis: Vozes, 1998.

FAZENDA, I. Interdisciplinaridade:um projeto em parceria. São Paulo: Loyola, 1991.

FRIGOTTO, G. A interdisciplinaridade como necessidade e como problema nas ciências sociais. In: JANTSCH, A. P.; BIANCHETTI, L. (Org.). Interdisciplinaridade para além da filosofia do sujeito.Petrópolis: Vozes, 2008. p. 25-50.

GUSDORF, G. Conhecimento interdisciplinar. Lisboa: Mathesis, 1992.

HOUAISS, A.; VILLAR, M. S. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008.

JANTSCH, A. P.; BIANCHETTI, L. (Org.). Interdisciplinaridade para além da filosofia do sujeito. Petrópolis: Vozes, 2008.

JAPIASSU, H. Interdisciplinaridade e patologia do saber. Rio de Janeiro: Imago, 1976.

SANTOS, B. S. Pela mão de Alice. São Paulo: Cortez, 1999.

VICENTINO, C. História geral. São Paulo: Scipione, 1997.