MODERNIDADE AVANÇADA E A REFLEXIVIDADE

Autores/as: JOSÉ MAURÍCIO DOMINGUES

Se a reflexividade é uma propriedade universal da espécie humana (sua definição se mesclando de maneira com frequência indistinta com a da racionalidade), as condições sociais institucionais e culturais da civilização moderna a vêm exigindo de forma cada vez mais intensa.

Weber (1991) definiu a racionalidade como “ação racional com relação a fins” (implicando a adequação eficiente dos meios em relação a objetivos) e a “ação racional com relação a valores” (em que a sistematicidade do comportamento garante consistência normativa). Embora ele mesmo não o assinale, parece claro aqui que o exame do mundo e de si mesmo por parte do sujeito, normalmente conhecido como reflexividade, seria crucial para a ação racional. Por sua vez, Schutz (1967) dividiu a ação em três momentos: o do “projeto’, anterior a ela mesma, ao qual se segue a ação propriamente dita, caracterizada por mera vivência, que culmina em um estágio retrospectivo em que o sujeito reflexivamente – isto é, de forma sistemática e detida – examina o que se passou antes. Reaparecem aí, transformadas, mas fiéis a suas origens, as abordagens de Descartes, com o sujeito que sistematicamente se interroga, assim refletindo, e de Hobbes, que transformou esse um sujeito suspenso na episteme em um ator racional capaz de localizar seus interesses (ou seja, autoanalisar-se) e agir em função deles (PARSONS, 1977), o que também está presente na visão de Marx (2003) da construção da classe operária como sujeito revolucionário, que retomou a concepção de metassujeito histórico de Hegel (DOMINGUES, 2003).

Se Weber (1991) terminou por pensar a modernidade com teatro de uma racionalização unilateral calcada na cadeia de meios e fins, sem que o sujeito seja capaz de se autoexaminar, Habermas (1981) apontou para uma racionalidade comunicativa que seria reflexiva no sentido de permitir que nosso “mundo da vida” fosse questionado e transformado. Beck (1992) retomou o tema nos quadros de um diagnóstico do presente e propôs a tese da “segunda modernidade”, reflexiva ao questionar seus próprios fundamentos e opções, nos planos da ciência, da política científica e no da vida pessoal, ante os riscos que o avanço da modernidade impõe, inclusive globalmente, em função de nossa intervenção sobre a natureza e mercê de processos radicais de individualização. Já para Giddens (1990), a modernidade se radicalizou através de seus mecanismos de “desencaixe”, que ampliam o tempo e o espaço, arrancando as relações sociais de contextos mais delimitados, abrindo-as hoje ao plano global e tornando contingentes em particular questões existenciais e de identidade. A reflexividade dominaria assim a vida social. Recaindo no cartesianismo, porém, ele afirma que o autoexame do sujeito e sua decisão racionalizada, após muita atenção e deliberação, a caracterizaria (GIDDENS, 2002).

Para avançar para além dessa tradição moderna e teorizar a própria modernidade, podemos conceituar a reflexividade em três camadas (DOMINGUES, 1999; 2003; 2009; LAHIRE, 2002).

A primeira, a reflexividade não-identitária, se calca no processo primário, teorizado por Freud e retomado por Castoriadis, em que cada elemento recebe caracterizações simbólicas que, embora contraditórias para a lógica da identidade, não são para o caldeirão desejante que é o “isso”, base da subjetividade. Ela não seria associal de fato, pois esses elementos simbólicos são compartilhados, ainda que sejam incorporados de maneira idiossincrática por cada indivíduo. Sobre o processo primário, estrutura-se um secundário, fundador do “eu”, calcado no “princípio da realidade” e já respondendo à lógica da identidade, separando domínios da ação e identidades individuais e coletivas. O “supereu”, como depositário das normas e dos padrões ideais de comportamento e identidade, emerge nesse mesmo processo. Uma reflexividade prática emerge dessa forma.

Isso não quer dizer que em seu exercício individual e coletivo sejamos engolidos por nossas “vivências”, mas sim que estas são elaboradas simbólica e instrumentalmente, cognitiva, moral e esteticamente, de forma mais fluida e pouco sistemática. Por outro lado, a própria reflexão sobre nós mesmos não pode deixar de ser uma reflexão sobre aqueles que conosco interagem e sobre o mundo em geral, em sua materialidade e objectificações. A própria introdução da reflexividade em um plano coletivo já necessariamente a exterioriza e faz daquela separação no máximo uma fronteira fluida. Da mesma forma, lidar com o mundo exterior é em parte reconhecer nossa posição nele, logo implicando uma reflexividade autodirigida também. Enfim, o processo primário, permanente, irrompe no desdobramento concreto do processo secundário.

Será apenas com uma reflexividade racionalizada, que conta com a atenção e um esforço sistemático e indivíduos e coletividades para compreender a si mesmo e a seu mundo e sobre ele exercer seu impacto, que emerge o que se costuma caracterizar como reflexividade na tradição moderna. É exatamente essa reflexividade, que inclui a sistematicidade do comportamento, seja em termos instrumentais-estratégicos, seja em termos de valores, que se aproxima, sem totalmente se identificar, do que o cartesianismo e seus sucessores definiram como o sujeito pensante cuja atenção se concentra sobre si mesmo ou o que as teorias da escolha racional concebem de forma semelhante desde sua inspiração em Hobbes.

Na modernidade avançada, há uma tendência a que as reflexividades não-identitária e racionalizada se intensifiquem, porquanto o universo simbólico se faça mais complexo, com, ao mesmo tempo, fortes deslocamentos e mudanças – institucionalmente definidos, muitas vezes intencionalmente perseguidos – constantemente ocorrendo. Isso faz com que avaliações e decisões, sejam instrumentais ou existenciais, sejam intensamente demandadas com mais atenção e sistematicidade do que se exigiria em contextos mais circunscritos e de ritmos mais lentos. Nada indica que essas tendências sejam alteradas em um futuro hoje discernível, com destaque para a instrumentalização da reflexividade racionalizada como meio de intervenção sobre a natureza, os indivíduos e a vida social. Questionamentos da própria modernidade mostram-se por ora limitados, conquanto a história siga aberta tanto ao acaso como à intervenção reflexiva da espécie humana.

Bibliografia

BECK, U. Risk society. Londres: Sage, 1992.

DOMINGUES, J. M. Criatividade social, subjetividade coletiva e a modernidade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999.

DOMINGUES, J. M. Ensaios de sociologia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

DOMINGUES, J. M. A América Latina e a modernidade contemporânea. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

GIDDENS, A. As conseqüências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1990.

GIDDENS, A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.

HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt: Suhrkamp, 1981.

LAHIRE, B. O homem plural. Petrópolis: Vozes, 2002.

MARX, K. A miséria da filosofia. São Paulo: Centauro, 2003.

PARSONS, T. Social interaction. In: PARSONS, T. Social systems and the evolution of action theory. Nova York: The Free Press, 1977. p.154-176.

SCHUTZ, A. The phenomenology of the social world. Evanston: Northwestern University Press, 1967.

WEBER, M. Economia e sociedade. Brasília: Editora UnB, 1991.