MOVIMENTO AUTOCONVOCADO

Autores/as: YAMILE SOCOLOVSKY

Denominam-se assim aqueles agrupamentos que assumem uma identidade centrada na sua autonomia em relação às instituições e organizações sindicais, políticas ou sociais preexistentes. O apelo à autoconvocatória pretende enfatizar o caráter espontâneo da conformação do coletivo em questão e acarreta um questionamento das estruturas organizacionais estabelecidas. Caracterizados pela sua espontaneidade, o assembleísmo e a ação direta de ocupação ou recuperação do espaço público, os movimentos de autoconvocados constroem sua identidade numa modalidade claramente associada ao conflito e à demanda. Essa peculiaridade faz com que, em termos gerais, esses coletivos tendam a dissolver-se ou a experimentar intermitências em sua atividade, de acordo com o ritmo em que se desenvolve a conflitividade que, de maneira relativa, eles mesmos contribuem a manter temporariamente e a amplificar socialmente. Entre outros fatores, uma chave de sua permanência se encontra em sua capacidade de reunir a solidariedade de outros setores sociais e na associação com outras instâncias de mobilização e organização. Sua rejeição de origem às formas institucionalizadas de organização lhe confere uma tendência refratária a promover sua própria estruturação, razão pela qual costumam gestar-se neles tensões entre aqueles que aspiram a preservar o caráter horizontal e de assembleia do movimento e aqueles que defendem o estabelecimento de normas de funcionamento orgânico – ou, inclusive, a incorporação do movimento a estruturas preexistentes cuja dinâmica interna e orientação política aspiram a transformar. Na medida em que a autoconvocatória articula-se em torno à demanda – normalmente frente ao Estado –, isso também incide na conformação de uma identidade cuja permanência é fortemente dependente da insatisfação que a mobiliza e a aglutina. A autoconvocatória resulta, em si mesma, uma forma de organização que pode veicular demandas de características muito diversas. É preciso, portanto, considerar o contexto de emergência desses movimentos e as relações que, em cada caso, configuram sua identidade a partir da denúncia ou do antagonismo.

Em grande parte, a emergência de agrupamentos de caráter autoconvocado vinculou-se recentemente, na América Latina e particularmente na Argentina, com as práticas emergentes da resistência à implementação das políticas neoliberais. Essa luta se desenvolveu em condições sumamente adversas: especialmente ao longo da década de 90 – quando se consolidou o programa político, econômico e cultural impulsionado pelos setores dominantes com o intuito de adequar a modalidade da integração dependente da América Latina ao processo de globalização hegemonizado pelo capital financeiro –, gerou-se um cenário no qual o sucateamento do Estado de bem-estar, a perda de direitos sociais e a profunda deterioração das condições de vida da maioria foram acompanhadas por um processo de deslegitimação das formas organizativas tradicionais dos setores subalternos. Essa circunstância conferiu a muitas dessas experiências um caráter fortemente defensivo e, ao mesmo tempo, crítico. A partir da apresentação de demandas pontuais, que eram vinculadas então com outras demandas, expandindo seu significado, os movimentos autoconvocados denunciavam a situação social e as políticas governamentais, mas sua presença e a efetividade de sua convocatória interpelavam também as organizações tradicionais, evidenciando sua falta de representatividade ou sua incapacidade para desenvolver uma estratégia de luta adequada às circunstâncias. Por uma parte, a escassa representatividade e a deslegitimação evidenciada nessas circunstâncias por algumas organizações políticas e sindicais deve atribuir-se à sua falta de democracia interna e ao alto grau de burocratização de suas estruturas e, em muitos casos, a uma parcela importante de cumplicidade com os governos responsáveis pela implementação de políticas antipopulares. Contudo, para além dessas claudicações, é preciso destacar que as próprias condições geradas pela aplicação do programa neoliberal, precedido em numerosos países da região por processos ditatoriais repressivos, redundou na desmobilização e desarticulação da maior parte das organizações populares, dificultando assim a possibilidade de que estas fossem percebidas como espaços efetivos paracanalizar o descontentamento e a busca de alternativas. A ruptura da continuidade histórica e da transmissão intergeracional da experiência de luta dos setores populares, assim como a perda de quadros militantes tanto como uma insidiosa e persistente campanha ideológica de descrédito da atividade política e sindical enfraqueceram enormemente essas organizações.

No caso dos sindicatos, deve-se considerar ainda que o efeito das profundas transformações geradas por essas políticas no setor produtivo e nas relações sociais – a fragmentação e dispersão da classe trabalhadora, o desemprego e a precarização laboral – instituíram-se como uma característica estrutural que condicionava negativamente todo esforço de organização e implantava o desafio de desenvolver novas formas de convocatória para a ação coletiva. Ante essa situação, as organizações preexistentes reagiram de maneira diversa, demonstrando suas convicções – quando não se achavam diretamente comprometidas com os interesses dos setores dominantes – suas diferentes vocações e capacidade de superar o isolamento, e de modificar suas práticas e estratégias de luta. Nesse sentido, a atividade de movimentos autoconvocados por fora dos sindicatos – quando não foi apropriada e capitalizada por grupos cujas práticas políticas dogmáticas e sectárias produziam o efeito adverso, ou seja, o do desgaste da mobilização e a contribuição ao descrédito geral da atividade militante – pôde ser, finalmente, uma contribuição à renovação e à ampliação dos espaços de participação nas organizações. No campo do sindicalismo docente argentino, o fenômeno dos movimentos autoconvocados foi relativamente importante na década de 90. Os trabalhadores docentes, mobilizados inicialmente em torno às demandas laborais e à resistência contra um agressivo processo de reforma do sistema educativo, conseguiram envolver em uma luta comum outros setores sociais, apelando à defesa da educação pública como valor central na democracia. Nesse marco, desdobraram-se numerosas experiências de autoconvocatória que – inclusive em suas variantes mais críticas – não deixaram de orbitar em torno às organizações sindicais, cuja presença deu continuidade e efetividade a uma mobilização social crescentemente estendida, contribuindo para configurar, na atualidade, uma situação política notoriamente mais favorável para o avanço das demandas populares. Na atual conjuntura, na Argentina, o surgimento de agrupamentos sindicais autoconvocados no setor privado associa-se à permanência de uma legislação que não reconhece plenamente o direito dos trabalhadores a se integrarem em uma pluralidade de organizações em que se conformem modelos sindicais alternativos.

Bibliografia