NATUREZA DO TRABALHO DOCENTE
O trabalho, em seu sentido geral e seguindo a perspectiva marxiana do conceito, envolve o dispêndio de energia física e mental tendo por objetivo a produção de um bem de uso, proporcionando assim a reprodução da vida humana.
Na educação, também ocorre um esforço físico e mental, mas, ao contrário de muitas outras formas de ação humana, seu objeto é de difícil determinação. Em seu sentido lato, o trabalho docente envolve a relação entre saberes e condutas; relação esta que está na base da ação educativa, haja vista que a socialização e/ou produção de saberes implica a formação de determinadas condutas humanas. Entretanto, se a natureza do trabalho docente pode ser pensada a partir da relação saber-conduta, não é possível ignorar tanto o contexto sócio-político-cultural onde ele ocorre quanto a atividade desenvolvida pelo professorado em seu cotidiano e como ela é representada.
Com efeito, as discussões sobre a natureza do trabalho docente assim como do processo de trabalho educativo apresentam, pelo menos, duas perspectivas de abordagem: uma que problematiza o trabalho docente segundo suas condições históricas e outra fruto da rejeição das abordagens estruturais e funcionalistas e do esgotamento das perspectivas crítico-reprodutivas que centra sua análise na atividade e no papel dos sujeitos a partir de suas representações cotidianas e ordinárias.
Para as abordagens cuja preocupação são as condições históricas do trabalho docente, importa problematizar as formas através das quais a natureza dessa ação foi sendo modificada. Autores como Hypolito (1997), Kreutz (1986) e Nóvoa (1991) fazem ver que o trabalho docente esteve, até o século XVII, estreitamente constituído por saberes e condutas ligadas a concepções religioso-cristãs e que somente foi modificada quando a atividade docente começou a ser deslocada da Igreja e exercida por leigos, [fazendo surgir] preocupações influenciadas pelo ideário liberal que indicavam a necessidade de dar um caráter mais técnico-profissional a esta atividade (HYPOLITO, 1997, p. 18).
A partir de então, ocorre uma modificação na concepção do trabalho docente, agora considerado com características mais técnicas e profissionais do que vocacionais e sacerdotais, cuja tradição data do século XVI, quando se visava à leitura de textos religiosos (HYPOLITO, 1997; KREUTZ, 1986; NÓVOA, 1991).
A concepção técnica do trabalho docente veio no bojo das mudanças sociais que atendeu a uma exigência do desenvolvimento da sociedade capitalista, urbana e liberal, que demandava, de forma crescente, atendimento educacional elementar para parcelas cada vez maiores da população trabalhadora (HYPOLITO, 1997, p. 19). Entretanto, a concepção técnico-profissional não eliminou o caráter vocacional/sacerdotal do trabalho docente, pois o próprio Estado, embora com marcante viés liberal, continuava incentivando as qualidades do trabalho docente que reforçavam o ideário religioso da vocação da docência (HYPOLITO, 1997, p. 18).
O liberalismo ajuda então a alterar a natureza do trabalho docente, produzindo formas de racionalização e de burocratização que, para alguns estudiosos, o aproximariam dos modelos de ação fabris, tornando a atividade do professorado mais próxima daquela dos trabalhadores das fábricas. O trabalho docente ganha assim um contorno mais técnico e operacional, seus conteúdos, formas e materiais instrucionais tornam-se cada vez mais determinados pelo Estado capitalista e pelo mercado. Consequentemente, os diferentes tipos de inter-relacionamento entre os professores ou entre professores e alunos assumem uma forma específica de submissão dos elementos humanos aos elementos tecnológicos materiais (SANTOS, 1989, p. 27), diferindo sobremaneira tanto do modelo de escola confessional vigente até o século XVII na Europa quanto da experiência de educação desenvolvida no final do medievo, na qual a relação educacional era individualizada e o saber se direcionava a objetivos educacionais específicos, geralmente de interesse dos estudantes (HAMILTON, 1992).
Essas características cada vez mais técnicas do trabalho docente vêm sendo estudadas considerando as reformas educacionais da América Latina sofridas principalmente durante os anos noventa. Tais reformas passaram a direcionar as formas de ensinar, de avaliar, de planejar e de administrar (OLIVEIRA; GONÇALVES; MELO, 2004, p. 188), trazendo cada vez mais os modelos empresariais para a concepção da educação e do trabalho docente (VIEIRA, 2004). Paralelas a tais orientações, as experiências chamadas de democrático-populares vêm explorando as dimensões políticas e sociais do trabalho docente, trazendo novas exigências profissionais para os docentes, sem a necessária adequação das condições de trabalho (OLIVEIRA; GONÇALVES; MELO, 2004, p. 188), resultando em mais responsabilidade para o professorado. E mais, no atual momento de globalização, marcado pelo crescente processo de racionalização e de intensificação do trabalho docente, o professorado se vê cada vez mais apartado da dimensão conceptual da educação e, para alguns estudiosos, favorecendo a proletarização do trabalho docente.
Todavia, a tese da proletarização do trabalho docente já vinha sendo contestada por autores como Silva (1992), acusando tal raciocínio de transferir de forma mecânica e automática para a análise do processo de trabalho escolar todos aqueles elementos que caracterizam o processo de trabalho diretamente produtivo (…) sem nos mostrar através de quais mediações se processa essa conexão (p. 177). E continua o autor afirmando que a tese do processo de trabalho capitalista está apenas opondo à atividade do professor a face política do trabalho capitalista, esquecendo-se de que ela não existe independentemente de sua origem num processo econômico. O que tem que ser provado é a natureza essencialmente capitalista da atividade docente, uma prova evidentemente impossível de ser apresentada (p. 179).
Na esteira desse pensamento, várias pesquisas foram realizadas perseguindo uma análise do trabalho docente que considerasse a relação entre a agência humana e o trabalho capitalista. Na análise do trabalho docente, não era possível ignorar que na realização da aula continuava a existir certa autonomia do professorado para adaptação de técnicas, de métodos, de materiais, de atividades, das características dos grupos de alunos, das condições materiais de trabalho e do apoio pedagógico e social (ou de sua falta) na operação do trabalho real. Como diz Jaén (1991), um trabalho entre seres humanos garante que muitas decisões, pelo menos como possibilidade, sejam inalienáveis (JAÉN, 1991, p. 82).
Os modos de execução passaram a ser considerados para se ter uma compreensão mais complexa do trabalho docente, fazendo ver que os docentes mantinham certo poder de decisão sobre vários aspectos do processo educativo.
Sem ignorar as fortes determinações externas e prescritivas que buscam definir uma natureza técnica e/ou científica para o trabalho docente, o caráter formativo da estrutura educacional também foi teorizado como desempenhando um papel educativo, implicando tanto um forte controle sobre os saberes e as condutas que devem prevalecer no processo educativo quanto as formas de resistências mais ou menos conscientes (APPLE, 1989; GIROUX, 1986).
Toda essa problematização remete a abordagens cuja preocupação sobre a natureza do trabalho docente recai na análise da atividade e no papel dos sujeitos em seus trabalhos reais, destacando as dinâmicas e as construções pessoais que ocorrem em sala de aula a lógica das ações locais. Nessa direção, o trabalho docente passa a ser analisado distante da norma e da prescrição, considerando os recursos cognitivos e sociais que os agentes devem dispor para operar o processo educativo.
As análises centradas na atividade têm perseguido o espaço individual e coletivo no trabalho docente, considerando que a natureza social que lhe desenha exige grande investimento subjetivo de docentes e de discentes (TELLO, 2004).
Se considerarmos que o trabalho docente implica a socialização/produção de saberes e condutas em relações sociais complexas, é mister considerar que a forma, o conteúdo, as matérias, os métodos, as técnicas de trabalho e os instrumentos precisam ser adaptados àquelas relações, sendo a prescrição apenas uma pequena parte daquilo que informa sua natureza, pois a ação dificilmente pode ser antecipadamente pelo contexto.
O trabalho docente é assim analisado como um trabalho no qual está implicada a ação, a cognição e a emoção, fazendo com que as situações e as interações locais dependam de seus agentes (docentes e discentes), mesmo que os conhecimentos e condutas sejam especificados pelos contextos. As atividades sociais dos agentes precisam ser negociadas e relacionadas às suas experiências e formação. Isso indica que o trabalho docente, concomitante à sua dimensão social, é também um trabalho emocional.
Claude Lessard (2009), citando Hélou e Lantheaume, diz que esse trabalho emocional implica: 1) a dificuldade de mobilizar os alunos que resistem à influência da escola, dos saberes e do professor, e de envolvê-los na atividade da aprendizagem; 2) a dificuldade de separar a vida pessoal e a vida profissional, a pressão permanente do trabalho, a sua ocupação progressiva, e a dificuldade de fixar um limite ao investimento de si próprio no trabalho; e 3) a dificuldade individual e colectiva de definir aquilo que constitui um bom trabalho. (LESSARD, 2009, p. 121). Tais dificuldades exigem respostas dos docentes forjadas na ação mesma da sala de aula e da escola, o que implica a construção de significados, negociações e acordos provisórios.
Há, pois, na ação docente, elementos sociais, culturais, históricos e pessoais que, com o seu peso, influenciam o trabalho docente, sempre gerando estabilidades provisórias entre o objeto do trabalho e o próprio sujeito, a sua ligação aos saberes científicos, escolares, pedagógicos, a sua ligação à escola e à sociedade (LESSARD, 2009, p. 124).
Assim, a natureza do trabalho docente pode ser pensada como um jogo entre o que já se encontra prescrito e a ação humana de modificação/adaptação do já existente; entre processos de objetivação e subjetivação, pois, se existe um conjunto de regras prévias, elas não dão conta de muitas das decisões que devem ser tomadas na ação educativa, tal como a disposição dos materiais didáticos, a forma de condução específica para grupos de alunos específicos, a regularização das aprendizagens e a construção da memória didática do grupo no tempo (LESSARD, 2009, p. 125).