PARQUE INFANTIL

Autores/as: ANA LÚCIA GOULART DE FARIA

No Brasil, o verbete parque infantil nos remete a Mário de Andrade, poeta e autor da obra-prima da literatura brasileira “Macunaíma- o herói sem nenhum caráter” escrita em 1929. Juntamente a Oswald de Andrade, foi um dos organizadores da Semana de Arte Moderna de 1922 e foi convidado, também como outros membros da Semana, a participar da gestão do prefeito da burguesia ilustrada Fabio Prado em 1935. Criaram então o Departamento de Cultura na prefeitura de São Paulo e, num projeto de urbanização da cidade, dentre tantos programas oferecidos por esse departamento para a classe operária, encontramos em alguns dos bairros operários de então: Parque Dom Pedro, Lapa, Ipiranga e Santo Amaro, o Parque Infantil para seus filhos e filhas de 3 a 12 anos.

Inspirado nas escolas ao ar livre comuns na época, em várias partes do mundo: EUA, Holanda, Hungria, Polônia, Dinamarca, França, Canadá, Uruguai, Chile, Argentina, Cuba, inclusive no México de José de Vasconcelos, voltadas a proteger as crianças da tuberculose; o parque infantil paulistano diferenciava-se, pois, além dessa preocupação, articulava educação, infância, natureza, cultura, arte e política indo além, portanto, da máxima em vigor “corpo são, mente sã”, pela sua forte ênfase no brincar e na arte. A planta arquitetônica revela essa articulação: estava construído dentro de um parque que ocupava um quarteirão, com pouquíssima parte edificada, sem salas de aula, com árvores, sombra, água, “tanque de vadear”, brinquedos.

Cabe aqui mostrar a concepção da época de um educador argentino sobre a complementariedade do parque infantil em relação a uma escola primária bastante criticada e levantando questões ainda hoje totalmente pertinentes. Nicanor Miranda, chefe da Divisão de Ensino e Recreio da Prefeitura de São Paulo, o citou no seu discurso de inauguração do Parque Infantil de Santo Amaro em 1938.

A escola é o lugar onde a criança tem que ficar sentada, bem quietinha, quatro horas por dia e nove meses por ano, absorvendo abstrações e sem a prática da experimentação… A escola é ainda individualista, na época em que vivemos, não se propondo a ensinar a cooperação, iniciativa, autodireção … Ao invés de respeitar o corpo e deixar a mente cuidar de si mesma, respeitamos a mente e descuidamos do corpo. Ambas as atitudes são erradas, mas não podemos deixar de reconhecer esta verdade tão simples: o físico serve de base ao mental e este último não deve ser desenvolvido em prejuízo do primeiro.

A escola não é, pois, o sistema ideal de cultura infantil. Outro sistema precisa, não diremos substituí-la, mas completá-la. Um sistema que tome a criança como ela é, e a nossa complexa civilização como ela é, harmonizando os dois fatos de uma maneira científica e, ao mesmo tempo, humana. Esse é o Parque Infantil. (MIRANDA , 1941, p.12-3)

Assim, contra a “cultura minúscula dos grupos escolares”, contra o “ranço didático” dos programas escolares e contra a moralização das práticas folclóricas, Mário de Andrade idealizou esse espaço público coletivo de educação para 400 crianças em cada unidade. Tanto as de 3 a 6 anos que em tempo integral o frequentavam (dando origem à rede pública de educação pré-escolar na esfera municipal) como as crianças escolares que alternadamente ao turno que frequentavam o grupo escolar (equivalente as nossas quatro séries iniciais ) conviviam com as crianças pequenas durante o dia todo. À noite era frequentado por jovens operários.

Ao mesmo tempo em que disciplinava o lazer da família operária, fazia pesquisa sobre tuberculose infantil e experimentava instrumentos para eliminar o sotaque das crianças de origem estrangeira (FILIZZOLA, 2002), o Parque Infantil, concomitantemente, como toda instituição educativa que gera esta tensão entre atenção e controle, também garantia o direito das crianças a serem crianças, o direito à infância, o direito ao não trabalho (FARIA, 2002). Mário de Andrade dizia que essa era uma tarefa que competia aos governos. Assim, o parque infantil é uma instituição pública educacional, embora não escolar, fazendo parte da política cultural da Pauliceia Desvairada. Portanto, não antecipava a escolarização, nem estava voltado à alfabetização e às disciplinas escolares, assim como não garantia exclusivamente o direito à assistência, muitas vezes assim entendido por não ser uma escola obrigatória com conteúdos escolares definidos previamente. A educação e a assistência são dois direitos da mesma criança (SILVA, 1998). Esse é um dos aspectos que já antecipava uma educação infantil de qualidade, sem segmentar a criança e levando em conta as culturas infantis produzidas por elas e entre elas provocadas por adultos formados para tal, sem antagonizar educação e assistência. Cabe lembrar que posteriormente é realizado um concurso para educadora sanitária que vai colaborar, futuramente, para separar a educação do cuidado.

Mário de Andrade viajou pelo Brasil todo pesquisando as manifestações culturais do povo, o folclore na sua concepção não exótica e dedicou-se principalmente à música. Fazia a formação das instrutoras com esse conteúdo da arte e da história popular. As principais recomendações para o trabalho educativo não escolar eram: não moralizar as histórias populares e folclóricas, não interferir quando as crianças estiverem desenhando e brincar com as crianças. No Parque Infantil, educação artística não teria como foco produzir tal ou qual habilidade ou aspecto cognitivo. A arte, “filha da preguiça”, nascida “dum bocejo sublime”, ganha o seu valor ao lado da brincadeira e do jogo, pelo prazer de sua fruição e não por uma suposta utilidade vinculada ao mundo do trabalho. (KUHLMANN JÚNIOR, 2002, p. 15). Eis mais um aspecto do legado dos parques infantis de Mário de Andrade para a educação infantil brasileira.

Finaliza este verbete uma frase sobre as diferentes linguagens e concepção de infância e de criança inventiva manifestada pelos modernistas (GOBBI, 2005) que justifica e fundamenta a criação dos parques infantis paulistanos por um deles. Escreveu, já em 29, Mário de Andrade: A criança é essencialmente um ser sensível à procura de expressão. Não possui ainda a inteligência abstraideira completamente formada. A inteligência dela não prevalece e muito menos não alumbra a totalidade da vida sensível. Diante de uma dor: chora – o que é muito mais expressivo do que abstrair: “ estou sofrendo”. A criança utiliza-se indiferentemente de todos os meios de expressão artística. Emprega a palavra, as batidas do ritmo, cantarola, desenha. Dirão que as tendências dela inda não se afirmaram. Sei. Mas é essa mesma vagueza de tendências que permite pra ela ser mais total. E aliás as tais tendências muitas vezes provêm da nossa inteligência exclusivamente.

Bibliografia

ANDRADE, M. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. 9 ed. São Paulo: Martins, 1974.

FARIA; A. L. G. Educação pré-escolar e cultura. São Paulo: Cortez, 2002.

FILIZZOLA, A. C. B. Na rua, a “troça”, no parque, a troca: os parques infantis da cidade de São Paulo na década de 1930. 2002. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, Faculdade de Educação, São Paulo.

GOBBI, M. A. Desenhos de outrora desenhos de agora. 2005. Tese (Doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Faculdade de Educação, Campinas.

KUHLMANN JÚNIOR, M. Prefácio In: FARIA, A. L. G. Educação pré-escolar e cultura. São Paulo: Cortez, p.9-15, 2002.

MIRANDA, N. Origem e propagação dos parques infantis e parques de jogos. São Paulo: Prefeitura Municial, Departamento de Cultura, 1941.

SILVA, A. S. Educação e assistência: dois direitos da mesma criança. Proposições, Campinas, v.10, n.28, p.40-53, 1998.