PARTICIPAÇÃO SOCIAL

Autores/as: FLORENCIA STUBRIN

Ação consciente de um coletivo social orientada a satisfazer um conjunto de necessidades comuns, que envolve a intervenção na esfera pública através de um relacionamento específico com o Estado – dentro, fora ou contra este –. Supõe uma ingerência nas relações de poder e na disputa pela distribuição dos recursos materiais e simbólicos.

Existe uma diversidade de acepções com as quais o termo é assimilado. Os debates em torno aos seus significados são intensos e seu grau de abrangência varia segundo as diversas perspectivas. Da participação na tomada de decisões à mera consulta, desprega-se um leque de possibilidades que incorporam de uma forma ou outra a ação dos sujeitos sociais nas políticas públicas. Durante as últimas décadas, particularmente no contexto dos processos de reforma neoliberal, os setores dominantes têm se apropriado dessa ideia, defendendo a necessidade de incorporar os sujeitos sociais na mudança das instituições estatais. A sobre-exaltação da ideia de participação acompanhou o processo de desmantelamento, privatização e mercantilização dos serviços públicos, assumindo um caráter apologético e despolitizado. Nas recomendações dos organismos de crédito internacionais – como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – resulta eloquente o apelo à estratégia de incorporação dos grupos envolvidos nos processos de reforma do sistema público – particularmente nos âmbitos da saúde e da educação – mediante a consulta, a avaliação e, mais recentemente, a fiscalização. Falsamente circunscrita à formulação de valorações, a participação torna-se assim uma formalidade. Noções como empoderamento, empreendedorismo, autogestão, formação de líderes, iniciativa social, motivação, cultura de trabalho comunitário – usadas como expressões de processos de participação popular – compõem uma operação discursiva que viabiliza argumentos de responsabilização/culpabilização vinculados à explicação da pobreza.

Desde uma perspectiva crítica, a participação social refere a processos dinâmicos e complexos que implicam uma ampliação do poder das massas populares envolvidas. Nesse sentido, algumas perspectivas teóricas merecem ser destacadas.

O marxismo tem sido – e continua sendo – um referente iniludível para a análise da participação popular. Os esforços teóricos inspirados nessa corrente interpretativa estiveram eminentemente centrados na análise do movimento operário, expressão emblemática do cenário emancipatório do século XIX. A ideia de sociedade como estrutura de classes sustentada na clássica oposição burguesia-proletariado, empresário-empregado, capital-trabalho, consolidava-se como a essência do conflito, em sociedades onde o trabalho tornava-se um elemento articulador da vida social e a matriz sindical encarnava a expressão popular. As abordagens historiográficas sobre a conformação da classe operária constituem uma fonte essencial para o estudo dos processos de mobilização e participação social.

A concepção ampliada do Estado de Gramsci resulta especialmente significativa para a abordagem dos vínculos entre os atores sociais e o Estado, eixo analítico transcendental para o estudo da participação social. Representando a soma da sociedade política e a sociedade civil, ambos os momentos constitutivos, distintos e indissociáveis, a própria noção de Estado supõe a participação das diversas esferas sociais, mediada pelos mecanismos de hegemonia e coerção (GRAMSCI, 1968). Explicitamente incluídos na esfera do Estado, os atores sociais veriam ampliada sua força potencialmente criativa nos processos de estruturação social. Por sua parte, a ideia de Estado como o locus de condensação das relações de poder e da luta de classes (POULANTZAS, 1981) sustenta o argumento de que toda transformação nas ordens política e social orientada à emancipação das massas populares depende da capacidade de ocupação progressiva de espaços nas diversas instâncias estatais, por parte das organizações e movimentos que as representam. A presença física na esfera governamental deverá ser, porém, acompanhada do desenvolvimento de redes e foros de resistência externos ao Estado e os seus aparelhos. A autonomia das massas populares e a ampliação do seu poder no seio do Estado aparecem ambos como componentes essenciais para sua emancipação.

Foi na década de 1960 que, acompanhando a intensificação da protesta social, o surgimento de novos movimentos e atores coletivos e a multiplicação das ações de intervenção dos setores populares emergiram tendências interpretarias destinadas à compreensão dos processos de mobilização e participação social. O paradigma da mobilização de recursos ou da ação estratégica, localizado nos Estados Unidos, e o paradigma identitário, de origem fundamentalmente europeia, posicionaram-se como as principais correntes teóricas nesse campo (COHEN, 1985; EDER, 1993).

A primeira vertente enfatiza a dimensão política da mobilização, destacando a capacidade organizativa dos atores coletivos e os vínculos destes com os contextos nos quais exercem as suas ações. O ambiente representa o marco de estruturação externa que permite a constituição dos coletivos em tantos agentes políticos, ao mesmo tempo em que determina os limites da ação. Cobram especial importância as noções de repertórios de ação (TILLY, 1981), estrutura de oportunidades políticas (TARROW, 1994), estruturas de mobilização (TARROW, 1994). O registro da dimensão histórica aparece como um elemento sumamente significativo, destacando os aspectos empíricos, conjunturais e situacionais. A influência do contexto no surgimento e consolidação dos movimentos e ações coletivas evidencia essa preponderância. A ênfase outorgada ao estabelecimento dos retos coletivos e propósitos comuns bem como ao reconhecimento de interesses compartilhados que conduzem à consolidação da solidariedade coletiva resulta sumamente útil para promover a articulação entre os diversos atores que compõem o mapa da participação popular.

A segunda vertente procurou descentrar o foco da análise dos conflitos de classe, abandonando o Estado como âmbito central dos processos de luta protagonizados por grupos sociais mobilizados e estabelecendo o problema da identidade como seu componente essencial. A emergência de práticas contestatórias no seio da sociedade civil, os diversos estratos que compõem os grupos e organizações sociais, as formas de sociabilidade internas e as características que adotam os processos decisórios ao interior dos movimentos aparecem como algumas das preocupações centrais dessa corrente. A potencialidade humana se sobrepõe marcadamente aos condicionamentos externos. A apelação à ideia de identidade alude a uma força infrassocial natural em oposição à imposição externa de determinados papéis sociais. A noção de classe é substituída pela ideia de movimento, expressão da ação socialmente conflitiva e culturalmente orientada exercida por um grupo social identificado com formas de apropriação da historicidade, modelos culturais, uma determinada consciência e uma moralidade (TOURAINE, 1984). A noção de identidade coletiva supõe a construção interativa das orientações, o campo de oportunidades e as coações nas quais estão circunscritas as ações de indivíduos e grupos. Ela é construída pela complexa trama de negociações estabelecidas entre os membros que compõem um grupo social e as relações que o coletivo estabelece com outras facções que configuram o sistema político e social (MELUCCI, 1996).

O aprofundamento das problemáticas que sobejassem aos processos de participação popular requer da consideração de dois aspectos centrais: a revalorização da ideia de sociedade como estrutura de classes onde um conjunto de grupos antagônicos pugna por impor seus interesses no marco da luta pelo poder – ainda que redefinida à luz das novas dinâmicas sociais –; e a consideração dos vínculos entre os atores organizados e o Estado, abordando a ação coletiva na sua dimensão política. A incorporação desses aspectos resulta indispensável para avançar na construção de contribuições teóricas à altura dos desafios impostos pelas complexas conjunturas da ação coletiva, visando contribuir à reformulação das práticas de mobilização e participação popular.

Bibliografia

COHEN, J. Strategy or identity: new theoretical paradigms and contemporary social movements. Social Research, New York, v. 52, n. 4, p. 663-716, 1985.

EDER, K. The new politics of class: social movements and cultural dynamics. London: Sage, 1993.

GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1968.

POULANTZAS, N. O estado, o poder, o socialismo. Rio de Janeiro: Graal, 1981.

MELUCCI, A. Challenging codes:collective action in the information age. Cambridge: Cambridge Press, 1996.

TARROW, S. Power in movement: social movements, collective action and politics. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

TOURAINE, A. Le retour de l´acteur. París: Fayard, 1984.

TILLY, L.A; TILLY, C. Class conflict and collective action. London: SAGE Publications.1981.