POLÍTICAS PÚBLICAS

Autores/as: BRUNO PINHEIRO WANDERLEY REIS

Chama-se política pública a todo conjunto sistemático de ações e procedimentos inter-relacionados, publicamente adotado por autoridade governamental com o propósito de lidar rotineiramente com algum tema específico. Embora qualquer organização possa adotar uma “política” para lidar com determinado assunto, tipicamente reserva-se a qualificação de política pública para designar as políticas adotadas por governos, sejam eles locais, nacionais ou regionais. Se temos em mente a observação de Bobbio (1986, p. 957), seguindo Max Weber, de que é impossível definir a política por seus fins, pois provavelmente não há fim que algum grupo político não se tenha disposto a perseguir em algum momento da história, então podemos ter uma noção da abrangência vertiginosa que poderá ser abarcada por nosso conceito: pode-se ter política pública, em princípio, para qualquer assunto de que queira se ocupar publicamente uma autoridade governamental.

Esse é um complicador fundamental para o esforço de enquadramento conceitual e analítico das políticas públicas, que torna vã qualquer pretensão de apreensão compreensiva de sua operação, pois a análise de políticas públicas setoriais será fatalmente informada por conhecimento específico à área afetada, como educação, saúde, energia, transporte, segurança e tantas outras. Do ponto de vista da ciência política, o estudo de políticas públicas tem, portanto, de recuar até certos parâmetros contextuais e estratégicos, rumo a proposições gerais e taxonomias que orientem a análise. Uma das classificações mais conhecidas remonta ao início da década de 1960 e apareceu em trabalho de Lowi (1964), dividindo as políticas em “distributivas”, “regulatórias” e “redistributivas”, conforme a abrangência relativa de seus efeitos e beneficiários, bem como a forma e o alcance das clivagens existentes entre os interesses envolvidos. Grosso modo, políticas distributivas caracterizar-se-iam por uma quase infinita dispersão dos recursos envolvidos e, portanto, tipicamente não induzirem agudos conflitos de interesse quanto à sua forma ou implementação. Tipicamente, envolvem subsídios estatais, canalização dispersa de recursos mediante demandas tópicas ou obras de alcance local. Políticas redistributivas, em contraste, envolveriam as “grandes questões”, que produzem clivagens relativamente profundas e estáveis na sociedade, e são percebidas pelos atores como portadoras de consequências relevantes para seus interesses. Decisões (ou a falta delas) na arena redistributiva produzem, portanto, ganhadores ou perdedores bastante identificáveis, o que a torna, por assim dizer, mais rígida, propensa a cristalizações do status quo propensas a durar anos, ou décadas. As políticas regulatórias, por fim, ocupariam posição intermediária, referindo-se caracteristicamente à ordenação ou regulação de um setor específico da economia ou da agenda pública – donde seu nome.

É preciso admitir que essa classificação permanece distante do clássico desiderato metodológico de categorias mutuamente excludentes e coletivamente exaustivas, a distinção entre os tipos não é cabal e se apoia explicitamente na própria percepção dos atores envolvidos, incorporando ambiguidades não desprezíveis. Não obstante, ela de fato abriga distinções importantes, que capturam algumas dimensões básicas das distinções cabíveis entre políticas, permitindo apropriação teórica frutífera ulterior.

Tanto que, poucos anos depois, Salisbury (1968) utilizava o quadro analítico de Lowi para um esforço relevante de teorização em políticas públicas. Procurando relacionar de forma sistemática os tipos de políticas com o seu contexto institucional, ele identifica na concentração/dispersão tanto do sistema decisório quanto do padrão de demandas condições mais ou menos favoráveis à operação de diferentes tipos de políticas. Assim, políticas distributivas tipicamente teriam lugar em arenas políticas onde tanto o padrão de demandas quanto o sistema decisório fossem fragmentados, enquanto a tomada de decisão em políticas redistributivas, com a cristalização da relação de forças que caracteriza estas últimas, requer e induz certa concentração tanto do padrão de demandas (pela organização exigida dos atores) quanto do sistema decisório (pela necessidade de lidar com o volume de pressões envolvido na arena redistributiva). As políticas regulatórias seriam caracterizadas justamente por um ambiente híbrido, onde um padrão de demandas fragmentado se defrontaria com um sistema decisório centralizado que chamaria para si a prerrogativa da regulação. A bem da elegância formal do argumento, Salisbury identifica no cenário contrário (ou seja, padrão de demandas centralizado com sistema decisório fragmentado) a operação de um quarto tipo de política: as políticas autorregulatórias.

A concentração/dispersão do padrão de demandas associa-se com certa frequência a um aspecto correlato, embora não idêntico, que é a concentração/difusão dos custos e benefícios de uma dada política. Wilson (1974) identificou um aspecto problemático também nessa matéria: políticas com benefícios concentrados e custos difusos seriam mais provavelmente adotadas do que suas recíprocas, com custos concentrados e benefícios difusos. Pois aqueles atores que concentram os custos ou os benefícios de uma política teriam os incentivos necessários a enfrentar os esforços de organização e mobilização relacionados à sua adoção, e tendem a prevalecer frente a adversários que – mesmo mais numerosos – se encontrem comparativamente mais dispersos e desorganizados. De fato, já uma década antes, Olson (1965) havia demonstrado que (tudo mais mantido constante), quanto mais numeroso um grupo, maiores as dificuldades a superar na persecução de seu interesse coletivo.

A análise de políticas públicas tipicamente se apoia no assim chamado “ciclo de políticas”: (1) estabelecimento da agenda, (2) formulação e (3) implementação seriam etapas pelas quais toda política necessariamente passa (ainda que de forma não muito sistemática), idealmente seguidas de sua (4) monitoração e (5) avaliação (cf. RODRIGUES 2010, p. 46-52). A trivialidade mesma dessa construção termina por propiciar roteiro seguro ao acompanhamento empírico de políticas públicas, mas proporciona também enquadramento para alguma reflexão teórica. A principal delas, a constatação de considerável tensão entre a eficiência na formulação e a eficácia na implementação de uma política. Como nos lembrou Gourevitch (1986, p. 17), “policy requires politics” (“políticas requerem política”) e a formulação acelerada no interior de um círculo tecnocrático restrito, mesmo altamente qualificado em termos técnicos, tende a comprometer a constituição de redes de corresponsabilização política, desejável para sua implementação; reciprocamente, a hiperexposição de uma agenda política pode comprometer a consistência do diagnóstico em que se baseará a política pública a ser formulada. O problema de otimização aí implicado se exprime de maneira sintética na fórmula da “autonomia inserida” (“embedded autonomy”), pela qual Evans (1993) procurou exprimir o contraditório desiderato de um estado apto a favorecer a adoção de boas políticas e, por extensão, o desenvolvimento econômico e social: queremos um estado autônomo de modo a não se deixar capturar por interesses específicos, mas não a ponto de ditar autoritariamente prioridades próprias, estranhas à sociedade; inserido na sociedade de modo a obter informação de qualidade e constituir a necessária rede de corresponsabilização política, mas não a ponto de perder a capacidade de processar publicamente as legítimas e contraditórias demandas que recebe, rumo a uma decisão apoiada em critérios universais. Esse delicado equilíbrio permanece, é claro, como ideal normativo referencial, exprimível em termos teóricos no ideal de se tornar o estado tão poroso quanto possível a todos os mais diversos interesses ou pontos de vista porventura existentes, de modo a não se deixar aprisionar por nenhum deles.

Na medida mesma em que se constitui em referência ideal, não se deve esperar encontrar esse desiderato realizado em qualquer caso histórico empiricamente observado. Como o exercício do poder político envolve fatalmente a disputa em torno de interesses, valores ou juízos conflitantes, a tentativa de apropriação estratégica do aparato institucional vigente por grupos interessados (qualquer que seja esse aparato) deve ser premissa da análise e não hipótese. Caso negligenciemos essa cautela, o desenho institucional adotado simplesmente restará tanto mais vulnerável a essa apropriação. Para ser consistente com a premissa de apropriação estratégica, essa referência normativa deverá envolver fatalmente a periódica reorganização dos procedimentos e conteúdos das políticas – ou os beneficiários iniciais irão aprisionar o sistema, subordinando-o a seus interesses. Não há, assim, “ponto de chegada”, desenho ideal para uma política específica, ou mesmo para um processo decisório. Eles têm de rearranjar-se continuamente, não apenas para adaptar-se a um ambiente contextual em perpétua transformação exógena, mas, sobretudo, para contrabalançar a propensão de toda política, todo procedimento rotinizado, a um esclerosamento endógeno, em razão de sua captura pelos eventuais beneficiários.

Bibliografia

BOBBIO, N. Política. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. (Org.). Dicionário de política. 2. ed. Brasília: Ed. UnB, 1986. p. 954-962.

EVANS, P. O estado como problema e solução. Lua Nova, São Paulo, n. 28/29, p. 107-156, 1993.

GOUREVITCH, P. Politics in hard times: comparative responses to international economic crises. Ithaca: Cornell University Press, 1986.

LOWI, T. J. American business, public policy, case-studies, and political theory. World Politics, Princeton, v. 16, p. 677-715, Jul. 1964.

OLSON, M. The logic of collective action: public goods and the theory of groups. Cambridge: Harvard University Press, 1965.

RODRIGUES, M. M. A. Políticas públicas. São Paulo: Publifolha, 2010. (Coleção Folha Explica).

SALISBURY, R. H. The analysis of public policy: the search for theories and roles. In: RANNEY, A. (Org.). Political science and public policy. Chicago: Markham, 1968. p. 151-175.

WILSON, J. Q. (Org.). The politics of regulation.Nova York: Basic Books, 1974.