PROFESSOR /DOCENTE
É difícil chegar a um consenso sobre uma categoria unívoca que defina o docente, entre outras coisas porque depende da perspectiva teórica, do momento histórico e inclusive do aspecto que cada disciplina acadêmica destaca em relação com o seu trabalho. Aqui vamos enquadrar a docência no marco da Sociologia das Profissões, o que significa que não abordaremos o que deve ser o docente, mas o que ele é na divisão do trabalho intelectual.
Nas diferentes tradições da Sociologia das Profissões, a docência representa um afazer atípico e inclassificável, na medida em que não se encaixa às coordenadas que definem uma profissão. Nas análises funcionalistas, a docência junto com o trabalho social e a enfermagem (casualmente carreiras majoritariamente femininas) se consideravam exemplos típicos de semiprofissões na medida em que não tinham os traços característicos das profissões de pleno direito, isto é, prestígio, preparação superior, perícia baseada tanto no conhecimento abstrato como prático, autonomia no desempenho, jurisdição profissional clara, pertencimento a uma organização de tipo colegial, códigos deontológicos e ethos de serviço altruísta (SIMPSON; SIMPSON, 1969).
Essa imagem funcionalista dos profissionais foi questionada pelas correntes críticas dos anos 60, nos Estados Unidos e, longe da visão neutra e idealizada que ofereciam os traços, os autores críticos enfatizaram o poder e as estratégias que empregavam os profissionais para conquistar esse poder em função de seus interesses particularistas, quase sempre fechando oportunidades para os possíveis aspirantes, a fim de manter o controle sobre o conhecimento especializado e, portanto, o monopólio sobre o mercado profissional (MURPHY, 1988).
Porém, tampouco os professores tinham um papel muito claro nesse cenário teórico. Em primeiro lugar, porque as profissões de referência eram também a medicina, o direito, a engenharia, isto é, aquelas que contam com um poder forte no mercado. Em segundo lugar, porque, diferentemente do mundo anglo-saxão, tanto na Europa como na América Latina, os processos de profissionalização não consistiram em assegurar o monopólio de determinados segmentos do mercado, na medida em que aquela foi estimulada e legitimada pelo Estado. Em terceiro lugar, porque, salvo exceções, os docentes como coletivo não se caracterizaram por defender um profissionalismo excludente mediante o controle dos mecanismos de recrutamento, certificação ou licenças, nem protagonizaram projetos coletivos de mobilidade ascendente para assegurar o controle de segmentos protegidos do mercado; pelo contrário, sua existência social resulta inimaginável, fora da organização burocrática do sistema educativo, porque, entre outras coisas, sua profissionalização está intimamente vinculada à expansão da escolarização nos séculos XIX e XX. (VANDERSTRAETEN, 2007).
Afortunadamente, os desenvolvimentos atuais no campo da Sociologia das Profissões permitem afirmar que a antiga profissão da docência não é precisamente uma profissão atípica, de maneira similar às profissões novas como a informática ou o design; sua legitimidade como tal não reside em excluir ou suprimir oportunidades para outros, mas em dominar o conhecimento especializado. O controle do conhecimento é, como aponta Freidson (2001), a essência do profissionalismo, um valor que não deve estar sujeito nem à lógica do mercado nem à burocracia, que é necessário cuidar e preservar na medida em que pode deteriorar-se, uma vez que as demandas de concorrência e gerencialismo afetam as instituições nas quais os profissionais desempenham funções-chaves. Por isso, mais que perder-se em definições bizantinas, o que interessa é detectar qual o trabalho que efetivamente realizam os profissionais.
Centrar o foco de análise nos processos de trabalho permite conectar com as múltiplas ordens sociais em que se desenvolve o labor docente. Seguindo Wilhelm Hennis (1998) na reconstrução do pensamento de Max Weber, pode-se afirmar que as distintas ordens sociais conformam determinadas condutas de vida e dão lugar a diferentes tipos humanos, na medidaem queestabelecem os limites e possibilidades do trabalho que se realiza nesse âmbito, construindo o que Weber chamou o destino profissional (Berufsschicksal). Não se deve minimizar as diferenças que existem, por exemplo, entre o trabalho de um docente em uma escola pública, em um centro privado elitista, em um instituto de investigação universitário ou em um coletivo de educação popular. Cada uma dessas ordens sociais, seja a da burocracia, da ciência, da empresa, ou a de uma ONG, supõe a conformação caraterológica de determinados tipos profissionais que são dominantes nesse âmbito e, ao mesmo tempo, neutraliza outros que não lhe são afins.
Essa perspectiva obriga a abandonar toda consideração essencialista da profissão docente. Como todas as outras profissões, esta está segmentada internamente segundo a ordem social em que se insere, mas também está segmentada pelas próprias hierarquias entre as ordens sociais; basta ver a diferença de renda e prestígio que existe entre os professores universitários e os professores de ensino básico. Por outra parte, o poder e a autonomia sobre o próprio trabalho não são homogêneos entre os distintos segmentos, particularmente quando as políticas neoliberais têm desintelectualizado e degradado boa parte das tarefas dos professores nas escolas públicas, ao mesmo tempo em que têm potenciado novas figuras profissionais no âmbito das novas tecnologias, da gestão ou da avaliação. Finalmente, é necessário considerar outras diferenças internas que influenciam na autonomia relativa de cada setor da profissão, como é o gênero, o hábitat rural ou urbano e, cada vez mais, a lacuna geracional.
A segmentação interna da profissão docente não pode ser motivo dissuasivo para a ação comum; reconhecer esse fato é uma perspectiva realista que se por um lado não desconhece que cada segmento tem reivindicações específicas, por outro não descarta a possibilidade de confluência em um projeto coletivo. O sucesso desse projeto unificador é factível, mas na atual conjuntura não está claro como se resolverá a tensão entre um profissionalismo desenhado hierarquicamente nas organizações, que demanda prestação de contas e padronização do ensino, e um profissionalismo gerado a partir da própria base docente apoiado na confiança e na autonomia (EVETTS, 2009). O desenlace dependerá da maneira pela qual se organizam os docentes e, mesmo que se trate de uma tendência incipiente, é alentador assinalar que, diante do declínio generalizado de todas as profissões, esteja emergindo um novo tipo de comunidade profissional, muito diferente dos organismos colegiados e dos grêmios corporativos. Trata-se de comunidades de prática, que não dizem respeito só aos membros da profissão, mas a todos os profissionais que se envolvem na solução de um problema (ADLER, 2008). Essa é uma nova problemática na Sociologia das Profissões; vale a pena acompanhá-la de perto porque representa atualmente a alternativa mais consistente para fazer frente à vulnerabilidade do professorado.