PROLETARIZAÇÃO DE PROFESSORES
O conceito de proletarização de professores deve ser confrontado inicialmente com a abordagem que situa os docentes do ensino básico como categoria vinculada às classes médias e situa o ofício de ensinar no rol dos trabalhos não-manuais da atividade humana, o qual, portanto, pela sua essência, é intelectual. No entanto, mesmo como categoria profissional constitutiva da intelectualidade inserida nas classes médias os professores, especialmente os do primário e secundário, são, do ponto de vista econômico, os proletários das profissões liberais (MILLS, 1979, p. 147). Em outras palavras: a condição material de vida decorrente desse trabalho o situa como proletário. Essa abordagem encontra ressonância no caso brasileiro em que a proletarização decorreu do empobrecimento econômico dessa categoria, fenômeno relacionado à expansão da escola pública desde a ditadura militar (1964-1985).
O crescimento econômico acelerado do capitalismo brasileiro, durante a ditadura militar, impôs uma política educacional que se materializou, em linhas gerais, na Reforma Universitária de 1968, que, entre outras consequências, facilitou a expansão dos cursos superiores privados, e na Lei nº 5.692/1971, que instituiu oito anos de escolaridade obrigatória no Brasil. A combinação dessas duas reformas engendrou uma nova categoria docente e, por conseguinte, no exercício da profissão em parâmetros distintos dos predominantes até a década de 1960, quando os professores públicos, formados em turmas pequenas nas poucas Faculdades existentes, originavam-se das classes médias urbanas e frações da burguesia.
A nova categoria resultou, fundamentalmente, de duas frações da estrutura de classes da sociedade brasileira desde o milagre econômico (1968-1974), que acelerou a modernização das relações de produção, acentuou a transição para uma sociedade urbano-industrial e ampliou as classes médias brasileiras. A primeira foi constituída por aqueles que sofreram um processo de mobilidade social vertical descendente, ou seja, pertenciam a certas camadas da burguesia ou das altas classes médias e foram proletarizados socialmente no curso da monopolização que as relações de produção capitalista assumiram nas últimas décadas do século XX. A segunda originou-se de determinadas frações das classes médias baixas ou das camadas dos trabalhadores urbanos que se beneficiaram da expansão da educação universitária desde os anos de 1970 e efetivaram uma mobilidade vertical ascendente na pirâmide da estrutura social. Esta última realizou uma trajetória social inversa da primeira, ou seja, teve ascensão no seu status social (FERREIRA JÚNIOR; BITTAR, 2006, p. 72-73). A proletarização atingiu as duas frações da nova categoria. Formada nos cursos de licenciaturas curtas das Faculdades privadas noturnas, ela substituiu a pequena elite intelectualizada das poucas escolas públicas existentes até o começo da década de 1970. Isso porque, depois, a extensão da escolaridade obrigatória de quatro para oito anos ocasionou a expansão quantitativa da escola fundamental, exigindo, para o seu atendimento, uma rápida formação de professores.
A combinação entre crescimento quantitativo, formação acelerada e arrocho salarial deteriorou as condições de vida e de trabalho dos professores, principalmente do setor público. Desde a década de 1970, a perda do poder aquisitivo dos salários, que acelerou o processo da sua proletarização, consistiu em fator principal para amplas mobilizações que culminaram em greves em todo o País, fenômeno extensivo à década de 1980. Mariano Enguita, estudando os fatores responsáveis pela proletarização dos professores do ensino básico, considerou que: A categoria dos docentes (…) compartilha traços próprios dos grupos profissionais com outras características da classe operária. Para sua proletarização contribuem seu crescimento numérico, a expansão e concentração das empresas privadas do setor, a tendência ao corte dos gastos sociais, a lógica controladora da Administração pública e a repercussão de seus salários sobre os custos da força de trabalho adulta (ENGUITA, 1991, p. 49). O processo perverso e contínuo de proletarização também ficou enfatizado no estudo de Angelina Peralva, para quem: Atores de uma sociedade moderna, onde a escolarização é um elemento central do processo de desenvolvimento e a institucionalização das relações de trabalho uma conquista datada, os professores têm sido, nos últimos anos, obrigados a se empenhar em uma luta mortal pela preservação de direitos trabalhistas que, para outras categorias, podem ser considerados como já adquiridos. Ao mesmo tempo foram, talvez, mais intensamente afetados pela proletarização do que qualquer outra categoria de trabalhadores urbanos no Brasil (PERALVA, 1991, p. 158).
Desse modo, um dos traços mais característicos da educação brasileira no século XX consistiu na expansão quantitativa da escola pública, universalização que ainda não alcançou o ensino médio e que, por ter se associado à perda salarial dos professores, provocou o seu empobrecimento e efeitos negativos no nível de ensino. Os números são elucidativos: em 1940, apenas 15% da população escolarizável (5 a 24 anos de idade) estava matriculada. Em 1970, as matrículas chegaram a 30%. Apesar do crescimento, permanecia fora da escola 70% dessa mesma população. Nas décadas posteriores, a expansão seguiu ritmo crescente: o acesso à escola de ensino fundamental (oito anos de escolaridade) atingia 80% da faixa etária em 1980 e 88% em 1990, contrastando com 45% na década de 1960. Em 2009, o Censo Escolar indicou 31.512.884 de alunos no Ensino Fundamental e 9.831.664 no Ensino Médio. Quanto ao contingente de professores, estatísticas do MEC/INEP constataram 1.977.978 em 2009. Sem um piso nacional, a maior categoria profissional do Brasil vem recebendo salários baixíssimos desde a década de 1970. Apenas em 2008 foi instituído o piso salarial nacional do magistério público da educação básica. A Lei nº 11.738, que regulamentou o artigo 206 da Constituição Federal, estabeleceu que, a partir de 2010, nenhum município poderá pagar menos que R$ 950,00 para professores de nível médio que trabalhem até 40 horas por semana. No entanto, mesmo aquém da reivindicação dos docentes, esse piso é descumprido na maioria dos municípios, âmbito no qual os professores têm menos força para exigir seus direitos.
A proletarização desmistificou as atividades pedagógicas do professor como ocupação especializada pertencente ao campo dos profissionais liberais, resultando na paulatina perda do seu status social. Ao mesmo tempo, determinou a construção da sua nova identidade social, isto é, a de um profissional submetido às mesmas contradições socioeconômicas que afetam a existência material dos trabalhadores manuais, mas cujo ofício não se identifica com o deles. A ambiguidade dessa identidade pode ser compreendida considerando um aspecto significativo da nova categoria: no final da década de 1980, a sua entidade nacional, até então denominada Confederação dos Professores do Brasil (CPB), passou a chamar-se Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). Essa decisão foi polêmica, pois envolveu a questão de conceber ou não o professor como um profissional distinto do funcionário da escola. Ao abrir mão do termo professor na nova nomenclatura, a entidade priorizou o aspecto sindical-corporativo e não o da essência do ofício de ensinar. Nesse começo de século XXI, continua persistindo a ambiguidade na identidade de uma categoria profissional proletarizada do ponto de vista econômico, mas que exerce um ofício de cunho intelectual. De fato, os professores têm de si próprios duas percepções distintas: a de que exercem um trabalho não devidamente reconhecido pelos governos e pela sociedade, o que requer a sua organização político-sindical, e a de que o ensino está ligado à expectativa de transformação e de mudanças sociais e, por isso, é uma profissão que não deixará de ser intelectual.