RESISTÊNCIA DOCENTE

Autores/as: SAVANA DINIZ GOMES MELO

Pode ser compreendida como situada no amplo espectro do conflito social, entendido como conflito entre capital e trabalho que se manifesta sob diferentes formas nos diversos momentos e espaços da vida social, em todas as instituições da sociedade, fazendo-se também presente na educação e, por conseguinte, na escola e no trabalho docente, seja ele exercido no setor público ou privado. Em tal acepção, a escola é percebida como local de trabalho organizado sob a forma capitalista, como lócus de conflito, e o docente reconhecido como trabalhador submetido a essa forma. Essa perspectiva rompe com o falseamento contido nas ideias de vocação, amor, dedicação, doação, abnegação e sacerdócio, supostamente próprias do magistério, e cujas origens ancoradas em passados longínquos encobrem as condições concretas, as relações sociais de produção sob as quais se assenta o trabalho docente na atualidade.

As teorias sobre o conflito social e resistência em geral corroboram com a compreensão do conflito e a resistência empreendida no âmbito do trabalho docente. Pasquino (1998), por exemplo, ajuda a identificar as características objetivas do conflito: i) as dimensões, que se mede pelo número de participantes; ii) a intensidade, medida pelo grau de envolvimento dos participantes, na sua disponibilidade a resistir até o fim; iii) os objetivos, cuja distinção habitual refere-se aos que almejam mudança no sistema e os que propõem mudanças do sistema; iv) a forma: manifestação nem sempre em ato e não necessariamente aberta. Para que o conflito se verifique em caráter aberto e manifesto, afirma o autor, é necessário que os trabalhadores tenham já constituído uma forma de organização, quer se trate de um grupo organizado estável ou de um grupo que apresente uma liderança natural carismática. Uma diferença básica entre conflitos organizados e não organizados, para ele, reside no fato de que, nos primeiros, a insatisfação poderá ser traduzida em objetivos reivindicáveis e negociáveis e poderá, portanto, ser composta e, nos segundos, a situação de conflito não desemboca em negociações.

A tipificação das lutas apresentada por Castoriadis (1985), que concebe dois tipos de lutas – explícitas e implícitas -, também corrobora para a compreensão da resistência docente. As explícitas referem-se àquelas protagonizadas pelos sindicatos e/ou partidos, como greves importantes e são compreendidas como momentos históricos do segundo tipo de lutas. As implícitas referem-se ao processo permanente de organização e ação cotidianas. São implícitas à existência do proletariado. Convergindo com Pasquino, Castoriadis compreende três momentos/aspectos fundamentais da luta: a ação, a organização e os objetivos, que se processam tanto de maneira formal quanto informal. Nas lutas cotidianas, segundo ele, nascem os elementos embrionários de uma nova forma de organização social, de um novo comportamento, de uma nova mentalidade humana. A luta implícita é, pois, para o autor, o reverso do trabalho cotidiano, é constante e dinâmica e as estratégias nela utilizadas podem ser criadas ou recriadas em cada momento, em função das condições objetivas e subjetivas em que os trabalhadores se encontrem. Podem adquirir sentidos, significados e proporções que as situam na luta mais ampla da classe trabalhadora pelo estabelecimento de novas relações sociais.

Outra tipificação importante da resistência dos trabalhadores é apresentada por Bernardo (1991), para quem “(…) os trabalhadores recorrem a […] formas de resistência e revolta tão variadas e complexas […], mas todas têm em comum uma consequência imediata: a redução do tempo de trabalho incorporado. […] Não há organização capitalista do processo de trabalho que não tome em conta essas formas de resistência e revolta e que não se destine a eliminá-las ou assimilá-las. […] É nessa perspectiva […] que deve entender-se a luta de classes.” Para o autor, as formas de resistência podem ser caracterizadas pelo modo de organização, podendo ser individuais ou coletivas. As formas individuais, sejam elas passivas ou ativas (preguiça, absenteísmo, alcoolismo, uso de estupefacientes e todos os modos práticos de reduzir o tempo de trabalho despendido, sabotagens individuais da produção, roubo de meios de produção ou matéria-prima, agressões individuais a superiores), condenam-se de antemão a não ultrapassar o âmbito do capitalismo e a não contestar o seu principal argumento. As formas coletivas, passivas (greves em que os trabalhadores ausentam-se do trabalho e se recolhem aos respectivos domicílios) ou ativas (manifestações coletivas em que cada participante tende a empenhar-se tão ativamente como o próprio organismo enquanto coletivo), são aquelas em que os trabalhadores se reúnem num organismo único, de modo que o ponto de referência é a globalidade dos que nela estão empenhados. Em sua perspectiva, os conflitos que se organizam de forma coletiva e ativa, e apenas eles, rompem positivamente com a disciplina capitalista, substituindo-a por outro sistema de relacionamento social, sendo essa a sua definição da autonomia dos trabalhadores na luta.

Por último, Chauí (1986), com suas formulações sobre a complexidade das ações ditas de resistência que os trabalhadores empreendem em seu cotidiano, oferece uma contribuição imprescindível no que se refere à compreensão do paradoxo presente nas ações de resistência. Ela ressalta que estas podem apresentar traços irrefutáveis de reprodução da lógica do capital contra a qual os próprios trabalhadores creem opor-se em muitas situações, o que se pode compreender como adesão. Isso porque, para ela, as manifestações podem se apresentar difusas e complexas, nem sempre se referindo às manifestações claramente identificadas contra as relações tipicamente capitalistas, mas os trabalhadores resistem e/ou aderem à lógica capitalista simultânea e permanentemente. Nesse processo, suas ações podem ser praticadas como estratégia deliberada de acúmulo de forças, adquirindo o sentido de fortalecer o sujeito, seja em âmbito individual ou grupal, e o significado de ampliar as possibilidades de favorecer a luta coletiva em momentos em que esta seja oportuna e potencialmente geradora de ganhos efetivos, tanto para o coletivo de trabalhadores, quanto para coletivos mais amplos.

Embora as ações dos sujeitos possam se motivar por múltiplas causalidades objetivas e subjetivas, inclusive sob a dimensão do inconsciente, a resistência docentedeve ser compreendida à luz das contribuições dos autores aportados como: as ações objetivas, constantes e dinâmicas praticadas pelos trabalhadores docentes contra a opressão a que estão sujeitos no seu processo de trabalho. Trabalho que é exercido em escolas privadas e públicas e, mesmo que se admitam distinções significativas, é organizado sob a lógica do capital. A resistência docente compreende, pois, ações individuais, grupais e/ou coletivas, contra as relações sociais, sendo expressão, portanto, da polarização entre docentes e seus empregadores, ou seja, entre duas classes, como também as tensões existentes no interior de cada uma delas.

Com efeito, a parte mais visível da resistência docente é protagonizada pelos sindicatos da categoria, que apresentam reivindicações históricas do setor, expressas em pautas nas quais, embora prevalecem os interesses corporativos, expressam-se, também, interesses mais amplos situados na luta geral da classe trabalhadora. Nos últimos anos, tal resistência tem ultrapassado as lutas corporativas e tem se dirigido às políticas e às reformas governamentais no campo da educação que tem implicado alterações no trabalho docente.

Entretanto, há um processo permanente de organização e ação cotidianas, sendo algumas delas visíveis e outras, nem tanto, algumas francamente deliberadas, outras irrefletidas, como respostas imediatas às pressões, através do qual os docentes podem chegar a obter alguns ganhos de natureza e magnitude possivelmente distintas daqueles reivindicados pela categoria docente nos últimos anos, por meio das lutas sindicais (MELO, 2009).

Para além da contraposição ou reprodução, as ações dos docentes podem também conter elementos de ambos concomitantemente. Podem ainda revelar a ressignificação da lógica do capital e apropriação de alguns de seus elementos em favor dos interesses dos trabalhadores docentes, ainda que sejam interesses imediatos. Suasmanifestações de resistência, explícitas e implícitas, arrestam a potencialidade tributária de transcendência dos muros da escola e alcance de horizontes da luta generalizada de classe.

A história mundial já ofereceu lições importantes não somente em relação às proporções que podem assumir as lutas docentes, mas também pelo potencial educativo e emancipatório presente na ação dos sujeitos que delas participaram.

Bibliografia

BERNARDO, J. Economia dos conflitos sociais. São Paulo: Cortez. 1991.

BRUNO, L. O que é autonomia operária. São Paulo: Brasiliense, 1985. (Coleção Primeiros Passos).

CASTORIADIS, C. A experiência do movimento operário. São Paulo: Brasiliense, 1985.

CHAUÍ, M. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1986.

MELO, S. D. G. Trabalho e conflito docente:experiências em escolas de educação profissional no Brasil e na Argentina. 2009. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Faculdade de Educação, Belo Horizonte.

PASQUINO, G. Conflito. In. BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N.; PASQUINO, G. Dicionário de política. Tradução Carmen C. Varriale et al. 11. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1998.