TEMPO DE ENSINO E TEMPO DE TRABALHO

Autores/as: APARECIDA NERI DE SOUZA

O tempo de trabalho docente pode ser definido em torno de dois eixos. O primeiro, normativo, determina o tempo de ensino medido em horas, regulares e complementares, de presença diante dos alunos. Esse tempo de ensino, também chamado por tempo de serviço, varia de acordo com a relação de emprego e com o campo disciplinar (geral ou especializado). Esse tempo também pode ser modulado de acordo com tarefas específicas, como, por exemplo, coordenação pedagógica. A este trabalho diante de uma classe ou grupo de alunos se anexa o tempo, medido em horas-aula, destinado à avaliação, orientação e recuperação coletiva dos alunos, às reuniões vinculadas ao ensino. Ele se concretiza mediante a concepção de jornada de trabalho. O segundo, não permite mensuração em horas-aula, é o tempo de trabalho docente.  Ao tempo de ensino, mensurável em horas-aula, agrega-se um conjunto de atividades não codificadas, mas prenhe de tempo, referidas à formação dos estudantes. Os professores desenvolvem, remuneradamente ou não, atividades como coordenador de turma ou classe; supervisão de estágios, trabalhos ou projetos estudantis; visitas ou estudo do meio; participação em projetos culturais e educacionais; conselhos de classe; conselhos deliberativos de escola. A essas atividades e tarefas, impostas ou aceitas, também se anexa o tempo de preparação e de correção de exercícios, provas e trabalhos escolares, seguido de contatos com pais e alunos. Trata-se de um tempo não inscrito numa duração especificada e depende do campo disciplinar em que o professor está inserido, assim como da concepção e prática profissional. É um tempo dificilmente mensurável porque é pouco visível. Quando é realizado na escola, é frequentemente hora ajustada à hora-aula e ao nível e/ou modalidade de ensino. Entretanto, para uma boa parte dos professores, essas atividades e tarefas são realizadas fora do estabelecimento escolar, frequentemente em domicílios, o que resulta pouca avaliação e controle pelos dirigentes do sistema escolar.

As formas de vivenciar o tempo do trabalho são diferenciadas segundo a posição no processo produtivo: aqueles que são contratados experimentam uma distinção entre o tempo do empregador e o seu “próprio” tempo. (Thompson, 1998, p. 272). O tempo como construção social institui não só formas de conduta como também informa as relações de trabalho. Harvey (2003), ao se apropriar da expressão construída por Marx sobre “compressão do tempo e do espaço”, informa-nos como o capitalismo tem construído instrumentos, entre eles, o relógio, que possibilitam associar maior velocidade nos ritmos de trabalho à disciplina e ao controle. No trabalho de professores, o relógio é parte constitutiva da organização do trabalho e se materializa na noção de hora-aula, medida em minutos, designada, no Brasil, pela expressão jornada de trabalho. Entretanto, o trabalho efetivamente realizado e medido pelo relógio não é suficiente para compreendermos o trabalho docente. O tempo é, antes de tudo, um sistema de relações sociais construído historicamente (Elias, 1998). O tempo de trabalho docente parece romper com o tempo medido pelo relógio: linear, mensurável, previsível (Bruni, 1991). Nesse sentido, não estaria submetido às mesmas temporalidades da produtividade que repousa, igualmente, sobre o cálculo do tempo das operações e atividades e a diminuição de sua duração.

Assim, alguns autores, como Agnès Pélage e Jean Luc Roger (1999) e a rede Eurydice da União Europeia, distinguem o tempo na presença da classe do tempo global de trabalho docente. O estudo da rede Eurydice conceitua tempo de ensino como o número de horas face à classe; e tempo de trabalho global como o número global de horas de trabalho incluindo não somente o ensino, mas também as atividades fora da sala de aula (na própria escola ou em outro espaço) como preparação e correções das atividades discentes.

Consequentemente, o tempo de trabalho docente coloca um duplo problema. O primeiro refere-se ao conhecimento e reconhecimento desse trabalho, pouco visível aos olhos exteriores – pais, alunos, administradores e os trabalhadores na própria instituição escolar -; e até mesmo aos próprios professores que não distinguem ou mensuram o trabalho realizado fora da instituição escolar.  O segundo problema refere-se às tensões entre a vida privada e profissional, ao lugar desse tipo de trabalho na vida cotidiana dos professores e, mais particularmente, das professoras, majoritárias entre os que trabalham no campo do ensino, que continuam submetidas às atribuições e imposições domésticas. O emprego do tempo de trabalho dos professores esconde as reservas temporais que devem ser mobilizadas; que não se referem às mudanças, estrito senso, nas jornadas de trabalho, mas ao engajamento dos professores, isto é, ao alongamento das obrigações dos professores. Há uma multiplicidade de medidas, sem alteração das jornadas de trabalho, para prolongamento do tempo de ensino: diminuição dos períodos de recesso escolar; avanço contínuo nas datas de entrada no ano letivo; formação de professores fora dos momentos em que eles estão com os alunos; restrições ao absenteísmo de professores. Em torno dessa dimensão de mobilização temporal, isto é, de modificação do uso estabelecido de trabalho de professores, há que se destacar a relativização da centralidade da dimensão disciplinar. As disciplinas escolares são referência de base para a organização do ensino e da atividade docente, no segundo ciclo do ensino fundamental, ensino médio e superior. Sobre elas se assenta o recrutamento e a seleção de professores, assim como as práticas profissionais, consequentemente são constitutivas da concepção de pertencimento profissional.  Entretanto, os currículos são contestados vis-à-vis aos saberes e práticas sociais de referência, que tendem a se definir em termos de condutas, de performances, de domínio de técnicas intelectuais, decompostas, avaliáveis e transversais às diferentes disciplinas. Nessa direção, cotidianamente a atividade profissional se desenvolve pela incitação ao engajamento às atividades trans ou interdisciplinares como transformadoras do trabalho docente. Essas mudanças favorecem a densificação do tempo de trabalho docente, não só pelo lugar que ocupa na vida, mas também pelo engajamento na realização. A duração e o uso do tempo de trabalho são cada vez mais individualizados e opacos.

Bibliografia

BRUNI, J. C. Tempo e trabalho intelectual. Tempo Social, São Paulo, v. 3, n. 1-2, p. 155-168, 1991.

ELIAS, N. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

EURYDICE. La profession enseignante em Europe: profil, métier et enjeux. In: Questions clés de l´éducation em Europe. Rapport III. Conditions de travail et salaires, secondaire inférieur general. Bruxelles: Eurydice, 2003. Falta indicação de páginas inicial e final.

HARVEY, D. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. 12. ed. São Paulo: Loyola, 2003.

PELAGE, A.; ROGER, J-L. Le temps de travail comme levier de la recomposition du métier d´enseignant au sécondaire. Sociologia del Lavoro, Bologna, n. 74-75, p. 312-325, 1999.

THOMPSON, E. P. Tempo, disciplina de trabalho e o capitalismo industrial. In: THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das Letras, 1998. p. 267-304.