TEMPOS ESCOLARES
São uma complexa, fina e delicada trama de fluxos, de durações e ritmos, de temporalidades dos ciclos vitais e geracionais e demais dimensões temporais inscritas no cotidiano escolar, constituindo-os e ordenando temporalmente. Nos tempos escolares estão muitos tempos dentro do tempo, que fazem da escola um espaço em vários tempos. Neles está a maior parte dos tempos de trabalho dos professores. Eles se constituem das temporalidades, das cadências, dos usos e distribuições dos períodos de tempo presentes nos espaços, nas interações, nos currículos, na cultura, nos rituais e práticas escolares e na organização do trabalho escolar. Referem-se, ainda, aos ritmos, transcursos e fluxos da vida escolar e de seus sujeitos, aos movimentos, processos e dinâmicas do cotidiano e da organização do trabalho na escola, às longas, médias e curtas durações históricas da instituição escolar. Parte da forma escolar e da cultura da escola, na arquitetura dos tempos escolares, estão imbricados os horizontes temporais do passado, do presente e do futuro que compõem os conhecimentos e saberes de outrora e de agora, transmitidos de geração a geração, que se desdobram nos conhecimentos futuros, articulando a memória cultural e o pretérito ao presente e ao devir. As temporalidades próprias dos diversos ciclos da vida, os ciclos vitais da infância, da juventude e da idade adulta também moram nos tempos escolares, assim como as temporalidades relativas às gerações humanas, originadas nas diferentes épocas em que os indivíduos se inseriram no transcurso da história, mediante seu nascimento. As novas gerações, as gerações intermediárias e as gerações mais antigas compõem os tempos escolares, sejam as gerações de docentes, sejam as dos discentes, neles tecendo relações de troca, do aprender e ensinar e do ensinar aprendendo. Os tempos escolares velam e revelam as responsabilidades, as dificuldades, as tensões e conflitos, tanto quanto o entendimento, a reciprocidade, a harmonia e entendimento presentes nas interações dos sujeitos sociais da escola, posicionados em diferentes ciclos de vida e gerações. Na arquitetura dos tempos escolares, destacam-se, ainda, ao lado dos relógios, outros marcadores temporais: os calendários e horários, que regulam os períodos de início e término, as durações e extensão dos períodos destinados às diversas atividades educativo-pedagógicas, às ações, às interações e práticas dos sujeitos sociais da escola, marcadores temporais visíveis nas paredes, nos quadros, nas agendas, entre outros lugares onde se mostram. Os calendários definem as subtemporalidades da escola, como os dias de trabalho e de descanso, os bimestres, os semestres. Eles estabelecem os períodos destinados à rotina escolar, como também os momentos e datas festivos ou comemorativos e definem as datas pedagógicas especiais. Entre elas, as ocasiões, as datas e prazos para as atividades de planejamento e de avaliação, os recessos, as férias, entre outras de suas funções. Acoplados aos calendários no ordenamento rítmico dos tempos escolares, estão os quadros de horários, esquadrinhando, distribuindo e definindo períodos, durações e ritmos. Os horários estabelecem os momentos da chegada e da saída da escola; os tempos do recreio, das aulas, bem como os turnos de trabalho, as sequências e o encadeamento das atividades escolares, entre outros de seus aspectos. Também os currículos envolvem dimensões e marcações temporais que revelam as opções político-pedagógicas e prioridades da escola. Neles, assim como nos calendários e horários, estão contidas as durações esperadas socialmente, nos termos de Merton (1992). Estas dizem respeito às expectativas associadas aos períodos de tempo definidos para os diversos tipos de interações sociais e atividades pedagógico-escolares, tais como a carga horária destinada às diferentes atividades, disciplinas e conteúdos de ensino. As durações esperadas socialmente distribuem e definem os períodos letivos, a seriação ou os ciclos de ensino e aprendizagem, as etapas e níveis do sistema escolar ao lado do que se deve fazer e alcançar em cada um desses tempos. Os currículos contêm pautas e padrões temporais que balizam os procedimentos de aprovação e de repetência dos estudantes, uma vez que para cada período, nível ou etapa dos percursos escolares fica determinado um conjunto de ensinamentos que os docentes deverão desenvolver e que os discentes deverão alcançar. Se essas durações e prazos são cumpridos conforme o esperado, os educandos são aprovados e, caso sejam descumpridos, são considerados reprovados, irregulares, lentos, fracos, ficam retidos, entre outras classificações e lugares que lhes são reservados. Os padrões temporais fixados pelas durações esperadas socialmente relativas às trajetórias escolares que habitam os horários, calendários e currículos são homogêneos e devem ser cumpridos por todos os discentes, embora eles sejam diferentes quanto a seus ritmos biopsíquicos de aprendizagem e às suas necessidades e histórias pessoais, sociais e escolares. Esses marcadores inscrevem-se nas dinâmicas de poder na escola e expressam as relações de força e os diferentes interesses, valores, concepções e projetos em disputa nos terrenos da educação, dentro e fora da escola. Ao definirem diferentes extensões de carga horária entre as disciplinas e os conteúdos de ensino, ao se estruturarem através da seriação ou dos ciclos, por exemplo, eles selecionam, classificam e hierarquizam os conhecimentos, os saberes e as atividades escolares, conforme as concepções e opções político-pedagógicas das escolas. Sendo eles formas de exercício do poder simbólico, os calendários, horários e currículos são campos de disputa, evocando uma noção técnico-racional do tempo na escola, conforme Hargreaves (1998). Eles priorizam ou desconsideram, asseguram ou proíbem, alargam ou estreitam os tempos para um conteúdo e outro, para uma atividade e outra, para uma e outra área de conhecimento, projetos e trabalhos. Como dispositivos de poder simbólico, os currículos, horários e calendários não são neutros. Fazem esquecer ou lembrar certas datas, enfatizam ou silenciam algo, assim como estabelecem prazos, fixam datas, momentos de partida e de chegada, conformando as cadências e durações das trajetórias escolares. Quanto à origem dessas regulações e contornos dos tempos escolares, é uma noção e formas de cômputo e mensuração do tempo vinda de longas cadeias de gerações humanas, culturas e épocas que os criaram. A noção de tempo e as formas de indicá-lo são uma construção sócio-histórica das culturas que os instituíram para compreender, para se localizar e para nomear os fluxos presentes nos movimentos da natureza e nas dinâmicas da vida social, das práticas sociais, conforme É. Durkheim (1989) e N. Elias (1989). Foram também criados para orientar e tornar possível o entendimento e a integração entre os indivíduos e grupos em interação, regulando, orientando e definindo temporalmente as durações e ritmos das práticas sociais e da vida em comum, da vida em sociedade, uma vez que definem os tempos e durações das atividades e rotinas das coletividades. A noção de tempo não é um a priori do pensamento humano, pois não nascemos com ela. Nós aprendemos a noção de tempo, segundo Durkheim e Elias, entre outros pensadores que analisaram a problemática do tempo social. Trata-se de uma instituição social do tempo, cuja noção e formas de medição temporais foram sendo inventadas e transmitidas ao longo da história. A noção de tempo que referencia e circunscreve os tempos escolares nos dias atuais é a de um tempo social mercantil, industrial, linear, exato e fragmentado, erigida nas sociedades ocidentais, paralelamente à emergência e consolidação da modernidade e do capitalismo industrial, sendo o relógio um dos principais instrumentos de sua mensuração. Esse contexto sócio-histórico e sua noção e formas de cômputo do tempo deu as bases para os tempos e ritmos da organização do trabalho na escola, ou seja, a moderna noção de tempo circunscreve os tempos escolares e o trabalho docente, visto que a escola passou a se estruturar como uma organização burocrática moderna, que busca a eficácia e a eficiência a partir da conduta racional dos indivíduos que requer um aproveitamento racional do tempo, nos termos de M. Weber (1964). Ou, na perspectiva de K. Marx (1971), a organização do trabalho na escola é regida pela lógica temporal do trabalho assalariado, da compra e venda do tempo de trabalho por um salário, em que está contido o tempo de trabalho não pago. No longo percurso histórico da civilização ocidental, inúmeros grupos sociais e culturas foram se afastando do movimento da natureza inumana, dos astros, como referente temporal dos compassos da vida social, agora pautados em outros ritmos, referenciados nos relógios, calendários e horários. E, mais recentemente, nos referentes do tempo eletrônico. A rítmica das atividades e das práticas sociais modificou-se. Novas cadências emergiram com as transformações do mundo do trabalho, dos modos de produção e reprodução da existência e da vida coletiva. Os ritmos do mundo fabril, da indústria, do urbano e das metrópoles se instauraram e expandiram a todas as áreas e domínios da experiência humana, tal como os tempos escolares. A produção mercantil, o tempo de trabalho vendido, comprado e apropriado impôs os ritmos da produtividade como parâmetro do mundo moderno e contemporâneo, do capitalismo ocidental, que embora não seja um padrão único ou absoluto, é o que predomina, é o que regula os outros tempos da vida pública e privada dos indivíduos. Os tempos escolares e neles as temporalidades inscritas na organização do trabalho escolar e da atividade docente, sob relações de produção pautadas na compra e venda do tempo de trabalho docente, fazem dos professores trabalhadores assalariados como outras categorias de trabalhadores. Nos tempos escolares estão as dinâmicas do tempo de trabalho dos professores, vendido e comprado por um salário. E neles estão ainda, como em outras instituições, campos e esferas da vida social, as dimensões do instituído e do instituinte. A primeira, relativa ao que está posto e determinado, à norma, às estruturas, ao padrão regulamentado e estabelecido. A segunda, a dimensão instituinte, refere-se aos protagonismos e ações dos sujeitos da escola, capazes de instaurar o inédito, o imprevisto, o inusitado. Os sujeitos sociais da escola, em sua ação cotidiana, transgridem, recusam, desobedecem, resistem, inovam, opõem-se aos tempos estabelecidos. Embora existam de forma clara e concreta no interior das escolas e no imaginário de seus sujeitos, os padrões, as durações e ritmos impostos pelos marcadores temporais e pela organização do trabalho na escola nem sempre são aceitos e obedecidos. Há inúmeras ocasiões e maneiras em que são desobedecidos, transgredidos, desconsiderados, descumpridos, refeitos e ressignificados na ação instituinte dos sujeitos sociais da escola, individual ou coletivamente, às claras ou às escondidas. Docentes e discentes costumam faltar à escola; estendem informalmente os horários dos recreios e diminuem os períodos das aulas; modificam os calendários e prazos conforme seus desejos, interesses e circunstâncias, por exemplo. Quaisquer que sejam os fios, trançados e formas em que os tempos escolares se compõem e são construídos na escola, são eles objeto de concordância como também de luta, de conflito. E tanto podem ser obedecidos quanto descumpridos. São mantidos ou alterados no jogo de interesses e forças nela existentes. Para além desses contornos e dinâmica dos tempos escolares, quando vistos numa perspectiva fenomenológica, observa-se, nos territórios da escola, uma experiência e sentimentos do tempo de natureza mais subjetiva e qualitativa, relativa ao que ali fazemos e aos sentidos e significados que atribuímos ao que ali se passa e acontece, conforme Hargreaves (1998) salienta. Nesse sentido, uma mesma aula de cinquenta minutos pode parecer de cinco, para os professores e jovens alunos que sentem prazer nas atividades nela realizadas. E, contrariamente, esses mesmos cinquenta minutos podem parecer uma aula de quatro horas, de minutos e minutos que nunca terminam, para esse mesmo grupo de docentes e discentes, para quem esse tempo não dá prazer ou não tem um significado positivo. Nas sociedades modernas, os tempos escolares são, também, um direito social, um direito de cidadania. Os cidadãos e cidadãs têm direito a um tempo de escola, que não lhes pode ser negado. Crianças e jovens devem ter acesso e permanecer nos tempos e espaços da escola, neles se desenvolvendo como sujeitos sociais individuais e coletivos, capazes de habitar e (re)inventar a vida em comum, o mundo. E, observando-se por outro ângulo, os profissionais da escola têm direito a um tempo de trabalho digno, mediante condições que lhes permitam realizar com qualidade social e humana o seu ofício de educadores. Os professores vendem seu tempo de trabalho às escolas, que devem respeitar seus direitos de trabalhadores conquistados em memoráveis tempos/movimentos/lutas docentes, em várias épocas e partes do mundo e novos direitos trabalhistas ainda devem ser conquistados. Os tempos escolares são, em suma, construções sócio-históricas que podem não somente reproduzir e conservar suas bases atuais, como também abrir-se a mudanças. Da mesma forma como os contornos e trançados da atual arquitetura dos tempos escolares foram gradativamente criados e instituídos, novos contornos e trançados temporais podem ser desenhados e edificados, mediante protagonismos instituintes dos sujeitos individuais e coletivos da educação e da escola. Podem abrir-se a novas, desejadas e possíveis figurações que façam dos tempos escolares e dos tempos docentes uma significativa realização humana, social, cultural. Que faça dos tempos escolares das crianças, adolescentes e jovens significativas aprendizagens e experiências de formação humana, vividas num tempo de direitos, de dignidade e alegria, que respeite e fecunde suas infâncias, adolesceres e juventudes para que se abram em devires plenos de vida, de humanas e formosas histórias.