TRABALHO DOCENTE NA EDUCAÇÃO PROFISSIONAL
O trabalho docente em geral tem se complexificado consideravelmente nas últimas décadas, em razão das transformações trazidas pelas novas políticas educacionais que implicaram mudanças na organização escolar e, logo, do trabalho escolar, compreendendo currículo, metodologias de ensino e de registro, processos de avaliação, planejamentos, competências, formas de organização e divisão do trabalho e dos tempos, relações de hierarquia, entre outros.
Em decorrência, o trabalho docente é reestruturado, inclusive na sua natureza e definição, passando a compreender não mais apenas as atividades de regência, como também a gestão da escola, o planejamento, a elaboração de projetos, a discussão coletiva do currículo e da avaliação.Nesse processo, emergem novos requerimentos, inclusive no que diz respeito à formação do profissional. (OLIVEIRA, 2002; 2004).
Tal fenômeno, verificado em todos os níveis e etapas da educação no Brasil e, também, em países centrais e periféricos, ainda que com matizes distintos (LESSARD, 2006), vem sendo estudado por muitos autores, constituindo-se num campo fecundo para investigações que permitem diferentes abordagens e focos. Alguns desses autores (APPLE, 1991; CONTRERAS, 2002; FANFANI, 2007; HYPÓLITO, 1991; OLIVEIRA, 2004) convergem na constatação de aspectos e consequências que se tornaram mais evidentes no trabalho docente: segmentação interna; mudança no perfil profissional; intensificação do trabalho incluindo a autointensificação; responsabilização dos professores pelo desempenho dos estudantes, da escola e do sistema de ensino; precarização do trabalho traduzida por perda de autonomia, desqualificação, desvalorização, adoecimento; dificuldades de organização coletiva em torno de interesses comuns, entre outros.
Há estudos sobre a mudança no perfil e o aparente paradoxo presente nas manifestações de satisfação e comprometimento dos professores ante ao nítido quadro de precarização do trabalho em que estes se encontram (BIRGIN, 2001).
O trabalho docente na educação profissional, além das características comuns ao trabalho docente em geral, acima referidas, apresenta elementos e/ou determinantes que decorrem de contextos específicos da área, ampliando sua complexidade.
O aspecto a ser destacado se refere à própria natureza da educação técnica ou tecnológica, que compreende atividades teóricas e práticas mais contíguas, e, por conseguinte, requer espaços físicos diferenciados além de salas de aula, como laboratórios, oficinas e, muitas vezes, ambientes externos do campo profissional. Exige ainda tempos e relações distintas entre professores e alunos, sobretudo nas aulas práticas, organizadas em grupos menores de alunos; visitas técnicas a contextos reais de atuação profissional; estágios supervisionados; orientações em projetos, pesquisas aplicadas, entre outras. Essa variabilidade traz implicações para o trabalho docente, conferindo-lhe maior flexibilidade e proximidade na relação com os estudantes e com outros contextos e ambientes de trabalho.
Na história da educação no Brasil, observa-se a origem da educação profissional como instrumento assistencialista e, posteriormente, de formação de força de trabalho para o setor das indústrias, elementos que lhe abonam a marca de educação para pobres e lhe conferem um menor prestígio. O dualismo dos sistemas escolares estruturados a partir do paralelismo entre escolas orientadas para a continuidade dos estudos e escolas orientadas para ingresso imediato no mercado de trabalho aprofunda o fosso entre educação e trabalho e expõe os docentes a tensões relativas aos fins da educação e da escola, bem como cria incertezas sobre seu próprio papel nesse processo. Mesmo nos contextos em que sistemas e escolas assumem a dupla função de preparar para seguimento de estudos e profissionalização, essa tensão, que é minimizada, não desaparece.
No contexto atual, a vinculação da educação profissional aos novos requerimentos do mercado expressa, entre outras, pela constituição do seu currículo por competências, com vistas a desenvolver competências profissionais vinculadas à resolução de problemas complexos e tarefas contextualizadas nas situações reais de trabalho, dá prosseguimento à noção de subordinação mais visível da educação aos interesses imediatos dos setores produtivos.
A atual condição de modalidade conferida à educação profissional na LDBEN (Lei nº 9.394, 1996), com possibilidade de articular-se com as etapas e níveis do ensino regular sem deles ser parte integrante, confere-lhe um caráter secundário, que também se estende ao financiamento, à gestão e se reflete sobre os docentes que atuam nessa área.
A flexibilidade admitida de um lado e a dificuldade de articulação e/ou integração entre o ensino acadêmico e o ensino profissionalizante de outro, expressas em heterogeneidade de ofertas e fluxos, currículos desarticulados e extensas jornadas de atividades discentes, entre outras, expõe os docentes das áreas de cultura geral e técnica ao isolamento recíproco. Somam-se, nesse quadro heterogêneo e flexível, as disputas por ocupação de espaços, tempos e conteúdos nos cursos, que denotam disputas por poder e status.
A multiplicidade de atores que passaram a atuar na oferta da educação profissional, em seus distintos níveis (escolas municipais, estaduais e federais, Sistema S, escolas livres, organizações não-governamentais, centrais sindicais, universidades, fundações e empresas), compõe um campo complexo com diferenças gritantes em torno de financiamento, objetivos, estrutura, organização do ensino, formas de ingresso de estudantes, público-alvo. O mesmo se pode dizer em termos de relações de emprego, de trabalho, de remuneração dos docentes, de oportunidades para capacitação, entre outras. Ante a tal complexidade, como pensar também nesse campo em identidade do trabalho docente? Como pensar em organização coletiva em torno de interesses comuns? Como pensar em políticas públicas no que tange à valorização do magistério?
Focalizando o setor público, observa-se que nas redes públicas municipais e estaduais de ensino, em que a oferta da educação profissional é secundarizada em razão das prioridades que a legislação nacional lhes atribui, esta vem sendo promovida de forma pontual por meio de programas, em que se destacam a insuficiência ou inexistência de quadros próprios, configurando uma situação de provisoriedade e de precariedade no ensino e no trabalho docente.
Na Rede federal, notoriamente com mais tradição na oferta da modalidade, há elementos significativos que expressam a divisão no trabalho docente: o distanciamento entre professores da área técnica e da área de cultura geral; a distinção das carreiras com diferentes retribuições materiais (Carreira do Magistério da Educação Básica, Técnica e Tecnológica e Carreira do Magistério Superior) e a presença crescente de professores temporários, na condição de substitutos, admitidos sem concurso e contratados sob as regras da Consolidação das Leis do Trabalho, em condições de emprego e de trabalho muitos distintas daquelas garantidas aos professores efetivos, o que dificulta as possibilidades de organização dos coletivos docentes, seja por defesa de direitos, seja por melhorias nas condições de trabalho. A tradição autoritária que marca essas instituições e a atual insuficiência ou ausência de canais institucionalizados de discussão e reflexão permanente entre docentes da cultura geral e técnicos têm corroborado com o processo de alienação dos trabalhadores, naturalizando problemas e práticas em defesa de interesses individuais ou de grupos, em detrimento dos fins últimos da educação e dos interesses coletivos. (MELO, 2009).
No que tange a possível identidade do trabalho docente na Rede Federal, os estudos de Burnier et al. (2007) mostram que os professores da educação profissional de ensino técnico situados em suas instituições escolares apresentam inserção particular na docência diferente, em alguns aspectos, da verificada entre docentes da educação geral e apresentam, em sua maioria, um conjunto de experiências com traços comuns: trajetórias de vida semelhantes, origem de famílias da classe trabalhadora, formação em curso técnico e experiência profissional de trabalho em empresas ou em indústrias na sua área de formação inicial. Outro aspecto observado é que esses professores não possuem formação específica para seu exercício profissional. Em geral, eles aprendem a ensinar a partir de sua própria atividade.
Há que se considerar que os sucessivos processos de reconfiguração de tal rede vêm conformando um movimento complexo no que diz respeito à autonomia das instituições escolares, que se reflete em suas finalidades e potencialidades.
A reconfiguração atual visando à integração de instituições para fins de constituição dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IF) demonstra esse movimento. O processo de ifetização vem despertando muitas expectativas, mas há também muitos temores e críticas que denunciam dimensões em nada inovadoras do modelo. Entre as críticas, Xavier Neto (2008), por exemplo, destaca a forma autoritária que marcou a medida; o seu conteúdo, compreendido como restrição à autonomia dessas instituições; o incentivo quase que exclusivo à pesquisa aplicada, voltada para os interesses mercantis em detrimento das demandas da sociedade. Amorim (2008), por sua vez, analisa a medida como a reapresentação e reafirmação da dualidade estrutural da educação brasileira sob novas bases.
Por outro lado, Machado (2010) considera que o modelo dos IF traz avanços em vários sentidos, como, por exemplo, em relação ao trabalho docente. Argumenta que a concepção de IF considera que todos os professores devam realizar atividades de ensino, pesquisa e extensão e que a verticalização pretendida promove a quebra de paradigmas na medida em que busca romper com o viés elitista perceptível, inclusive, entre os que defendem o modelo de universidade tecnológica. A autora destaca que, no modelo, cada professor, independentemente de sua titulação, pode e deve atuar em cursos de qualificação e técnicos, pondo fim à noção de que os portadores de título de doutor só devam atuar na pós-graduação. Afirma ainda que a pesquisa tecnológica é científica e que toda pesquisa é sempre aplicada. E adverte que no conceito de relação entre instituições escolares e entorno social contido nas formulações do modelo (arranjos produtivos, culturais e sociais locais, cooperativas, economia solidária, etc.) não há indicação de predominância da lógica empresarial.
Embora controvertida, a atual reconfiguração da rede federal é complexa e demanda estudos aprofundados envolvendo não somente as atuais políticas e práticas afetas à educação profissional e tecnológica, mas também à totalidade das recentes políticas e práticas relativas à educação básica e superior no país.
A despeito da complexidade que envolve o trabalho docente em geral, convém evidenciar que, ante as transformações recentes nas suas concepções e práticas, podem haver surgido também alguns ganhos para os profissionais e para a sociedade, ainda que estes possam ser discutíveis. Abriu-se, por exemplo, a possibilidade para se compreender o trabalho docente na sua integralidade, abarcando concepção, execução e gestão e com o princípio da indissociabilidade e integração entre gestão e docência. Também se permitiu recuperar e reconhecer dimensões do trabalho previamente existentes, não inteiramente visíveis anteriormente. E com os novos requerimentos de formação, abriu-se a possibilidade de aumento de qualificação dos profissionais em todos os níveis, etapas e modalidades da educação, o que se evidencia, sobretudo, na educação infantil. No tocante ao trabalho docente na educação profissional, é oportuno destacar como um ganho relevante o seu reconhecimento como uma alternativa de educação de qualidade e com potencial de satisfazer as exigências de uma formação consistente.
Esses são alguns dos aspectos genéricos que balizam o trabalho docente na educação profissional que, tal como o trabalho docente em geral, é marcado por grande variabilidade e tensões e se apresenta como um campo rico e aberto para estudos.