TRABALHO
A forma humana de representar a realidade social dá-se mediante categorias e conceitos que se produzem socialmente. Quando as categorias e conceitos não expressam, no plano do pensamento e da comunicação, a materialidade da realidade que se busca compreender e, sobre a mesma, atuar, tornam-se representações abstratas e ideológicas e cumprem um papel de mascaramento da ordem social. Por isso é que não só o trabalho, mas outras categorias assumem historicamente sentidos polissêmicos (FRIGOTTO, 2009).
Pela afirmação de que o trabalho é uma categoria antediluviana, Marx nos permite perceber o quanto absurda é a tese do fim do trabalho e, ao mesmo tempo, que a sua forma concreta de ser e o sentido que se lhes atribui estão vincados aos diferentes modos sociais de produção da existência – trabalho escravo e servil, na antiguidade e idade média, e trabalho abstrato (compra e venda de força de trabalho), trabalho assalariado, trabalho alienado, sob o modo de produção capitalista (NOSELLA, 2005; ANTUNES, 2000).
É, sobretudo, em Marx que encontramos o sentido de trabalho que vai à raiz do modo como os seres humanos produzem a si mesmos. Trata-se do sentido ontológico de trabalho.
Antes, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza. Ele mesmo se defronta com a matéria natural como uma força natural. Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporeidade, braços, pernas, cabeça e mãos, a fim de se apropriar da matéria natural numa forma útil à própria vida. Ao atuar, por meio desse movimento, sobre a natureza externa a ele e ao modificá-la, ele modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza (MARX, 1983, p. 149-150).
A atividade de responder às necessidades vitais não é exclusiva ao ser humano. Um animal move-se e age em busca de sua sobrevivência, mas o faz programado por uma determinação genética. Por isso, não projeta sua existência, não a modifica, mas se adapta e responde instintivamente ao meio. É no próprio processo histórico de tornar-se humano que surge a atividade que denominamos de trabalho como algo específico do homem. Netto e Braz, partindo do legado de Marx, destacam três razões que definem o trabalho como atividade específica do ser humano:
Em primeiro lugar, porque o trabalho não se opera com uma atuação imediata sobre a matéria natural; diferentemente, ele exige instrumentos que, no seu desenvolvimento, vão cada vez mais interpondo entre aqueles que o executam e a matéria; em segundo lugar, porque o trabalho não realiza cumprindo determinações genéticas; bem ao contrário, passa a exigir habilidades e conhecimentos que se adquirem inicialmente por repetição e experimentação e que se transmitem mediante aprendizado; em terceiro lugar, porque o trabalho não atende um elenco limitado e praticamente invariável de necessidades, nem as satisfaz sob formas fixas (grifo dos autores) (NETTO; BRAZ, 2006, p. 30-31).
Sob essa concepção, o trabalho é um processo que permeia todo o ser do homem e constitui a sua especificidade (KOSIK, 1986). Por isso, o mesmo não se reduz à atividade laborativa ou emprego, mas à produção de todas as dimensões da vida humana. Na sua dimensão mais crucial, ele aparece como atividade que responde à produção dos elementos necessários e imperativos à vida biológica dos seres humanos enquanto seres ou animais evoluídos da natureza. Concomitantemente, porém, responde às necessidades de sua vida intelectual, cultural, social, estética, simbólica, lúdica e afetiva. Trata-se de necessidades que, por serem históricas, assumem especificidades no tempo e no espaço. Com justa razão se pode designar o homem que trabalha, ou seja, o animal tornado homem através do trabalho, como um ser que dá respostas. Com efeito, é inegável que toda a atividade laborativa surge como solução de respostas ao carecimento que a provoca (LUKÁCS, 1978, p.5).
Essas diferentes dimensões circunscrevem o trabalho humano na esfera da necessidade e da liberdade, sendo ambas inseparáveis. A primeira diz respeito a um quanto de dispêndio de tempo e de energia física e mental do ser humano, mediado por seu poder inventivo de novas técnicas e saltos qualitativos tecnológicos, para responder às necessidades vitais num determinado tempo histórico. A segunda é definida pelo trabalho na sua dimensão de possibilidade de dilatar as capacidades e qualidades mais especificamente humanas com o fim em si mesmas. Tempo livre de efetiva escolha, gozo, fruição e criação, que não se confunde com férias ou descanso de fim de semana, mas uma conquista histórica.
Por ser o trabalho a atividade pela qual o ser humano estabelece intercâmbio com a natureza, o mesmo constitui-se em dever ético e direito inalienável. Dever, porque quem não trabalha para satisfazer suas necessidades explora o trabalho de outrem. Direito, porque ao negar-se a possibilidade desse intercâmbio, nega-se a possibilidade à reprodução da vida. Esse é o sentido ético-político do trabalho como princípio educativo ou de sua socialização desde a infância, assinalado por Karl Marx e desenvolvido, entre outros, por Antônio Gramsci.
A forma que assume o trabalho até o presente dá-se sob a cisão da sociedade em classes sociais e da dominação e exploração do homem sobre o homem. No capitalismo, a forma dominante que assume o trabalho é de emprego, ou seja, da compra e venda da força física, psíquica e intelectual daqueles que são desprovidos da propriedade dos meios e instrumentos de produção. Uma mercadoria especial que os proprietários dos meios e instrumentos de produção compram e gerenciam de tal sorte que o dispêndio da mesma pelo trabalhador no processo produtivo pague o seu valor de mercado em forma de salário ou meios de subsistência e, além disso, produza um valor excedente ou mais-valia que é apropriado pelo comprador. O capital apropria-se privadamente também da ciência e tecnologia e as incorpora ao processo produtivo como trabalho vivo objetivado e que se tornam uma força contra o trabalhador e meio de ampliar o lucro mediante a sua superexploração.
No plano da ideologia, a representação que se constrói é a de que o capitalista acumula por seu trabalho e o trabalhador ganha o que é justo pelo que produz. O pressuposto é de que os proprietários privados de meios e instrumentos de produção e os trabalhadores que vendem sua força de trabalho o fazem numa situação de igualdade e por livre escolha. Apaga-se, portanto, a existência, a cisão em classes sociais antagônicas que permite a exploração e alienação do trabalho.