CULTURA DO DESEMPENHO
“Cultura do desempenho” é uma expressão que indica uma pluralidade de princípios, conhecimentos, valores, normas, doutrinas, tecnologias e modos de fazer, de pensar e de se comportar à luz de uma característica geral (o desempenho), cuja conotação filosófica e política agrada a muitos e intriga outros.
A conotação já está implícita na semântica do termo. O dicionário da língua portuguesa diz:
Desempenho é cumprimento de obrigação ou de promessa, execução; maneira como atua ou se comporta alguém ou algo avaliada em termo de eficiência, de rendimento; atuação desejada ou observada de um indivíduo ou grupo na execução de uma tarefa, cujos resultados são posteriormente analisados para avaliar a necessidade de modificação ou melhoria (…).; performance, atuação. (HOUAISS, 2001, p. 978)
“Desempenho”, portanto, é sinônimo de performance, derivado do francês antigo parfournir e incorporado tanto na língua inglesa to perform: efetuar, executar, cumprir (com o dever), interpretar (um papel), tocar (uma música). No mesmo dicionário, lê-se: índice que avalia o desempenho numa competição qualquer, exercício de atuação, proeza de representação (HOUAISS, 2001, p.2187). A expressão “performance” se encontra também na língua italiana, cujo dicionário diz que o termo é utilizado mais frequentemente na linguagem esportiva, para indicar o desenvolvimento e o resultado em uma ou mais competições, expressando a ideia do valor de um atleta ou de um cavalo. Aliás, a utilização mais comum desse termo se refere à linguagem hípica para indicar (perform) um cavalo que tenha alcançado importantes performances (DEVOTO; OLI, 1971, p.1671). Os dicionários, como se vê, associam os termos desempenho e performance aos sentidos de execução, competência, obrigação, avaliação, representação, méritos, rendimento, provas, etc.
Obviamente, o sentido desses dois sinônimos diverge profundamente do tradicional conceito de educação assim como Durkheim, por exemplo, a define:
Ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; (DURKHEIM, 1986, p. 58).
Ou seja, o conceito “educação”, na tradição humanista, expressa um sentido de possibilidade, de amadurecimento humano, de ação dialógica entre gerações, de cumplicidade entre o educador e o educando; mais ainda, de liberdade e opção, uma vez que “educar” é prioritariamente uma dimensão ética, não mecânica ou técnica.
Assim, a cultura do desempenho é a negação da pedagogia como espaço profissional de humanização por meio de atividades ético-científicas; sua significação é de natureza tecnocrata, produtivista, “que transfere as técnicas empresariais de aumento de produtividade mercadológica como solução para o ofício peculiar de educar” (RICCI, 2010). A cultura do desempenho, desconsiderando a dialética profundamente humanista entre educação e sociedade, delega ao mercado a elaboração de modelos gestores educacionais (técnicos) a serem desempenhados e responsabiliza a escola pelos medíocres resultados.
As teorias e técnicas da “cultura do desempenho” estão presentes hoje em inúmeros textos de especialistas (a maioria deles, economistas), em muitas falas dos políticos, em vários planos educacionais, em quase todas as iniciativas dos governos e nas preocupações dos gestores da educação. De outro lado, o clima cultural tecnocrático dessa cultura foi e continua sendo denunciado por várias análises críticas.
A cultura do desempenho impõe-se entre nós a partir de 1985. A crise dos paradigmas teóricos, os escassos resultados de muitas avaliações da educação básica e superior, a expansão dos Programas de Pós-graduação em Educação, cuja escolarização do trabalho científico nivela pelos títulos e diplomas pesquisas de qualidade com outras menos significativas, e, finalmente, a explosão do ensino superior privado, que frequentemente oferece cursos muito medíocres, representaram as condições favoráveis à difusão dessa cultura. Daí em diante, as secretarias de educação dos Estados deixaram de ser instituições de apoio às escolas para serem instituições de avaliação externas e de monitoramento; a CAPES, de instituição criada e voltada para a formação dos quadros docentes do ensino superior, virou instituição de avaliação e “rankeamento” escolar.
Listamos algumas iniciativas governamentais inspiradas na cultura do desempenho: 1. SAEB Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica, iniciado em 1990 (Avaliação por amostra das 4ªs e 8ªs séries do ensino fundamental e 3ª série do ensino médio), criado pelo INEP/MEC; 2. SARESP Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo, iniciado em 1996; 3. ENEM Exame Nacional do Ensino Médio, iniciado em 1998 pelo INEP/MEC; 4. PISA Programas de Avaliação Internacional de Alunos. Brasil participou a primeira vez em 2003 sendo o último colocado; 5. PROVA BRASIL avaliação censitária das 4ª e 8ª séries do Ensino Fundamental a nível nacional INEP/MEC, iniciada em 2005; 6. PROVINHA BRASIL avaliação diagnóstica aplicada aos alunos matriculados no segundo ano do ensino fundamental, iniciada em 2008; 7. Lei complementar 1097/2009 institui o sistema de promoção para os integrantes do Quadro do Magistério da Secretaria de Educação; 8. No estado de São Paulo se instituiu um bônus, para os gestores, professores e funcionários das escolas que atinjam as metas estabelecidas pelo Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo IDESP, inspirado no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica IDEB criado em 2007 para medir a qualidade de cada escola e de cada rede de ensino do Brasil INEP/MEC.
Os gestores da cultura do desempenho defendem a neutralidade da escolarização argumentando que um bom desempenho escolar permitirá aos futuros cidadãos posicionarem-se politicamente em favor desta ou de outra sociedade. Na verdade, a pedagogia do desempenho universaliza as exigências do mercado e exclui junto aos educadores o debate filosófico sobre o sentido último da educação.
A cultura do desempenho evidencia-se pela ênfase que é dada à meritocracia e à competência. A primeira, ocultando-se sob o valor do mérito, prioriza de fato o poder de poucos, o cratós, mascarado pela abstrata possibilidade de oportunidades universais, e a segunda (competência), mesmo apresentando-se como se não tivesse história, como se fosse um mero conceito científico que nada pretende mercadologicamente, contém uma clara historicidade e interesses práticos:
Meritocracia – a igualdade das oportunidades é sociologicamente (Bourdieu e Passeron) considerada mera ideologia utilizada para justificar a permanência das desigualdades, legitimadas assim aos olhos de todos. (FISCHER,1990,p.617).
Competência – na sua origem, a palavra “competência” tinha apenas um significado jurídico (…); na linguagem corrente, ampliou-se e abrange também a indicação de um alto grau no desempenho de atividades específicas, eventualmente de caráter profissional (…), e vem substituindo o termo “qualificação” que, genericamente, desde a década de 1930, na França, indicava apenas um patamar básico e coletivo de habilitação técnica escolar. Hoje, porém, num mundo de alta competição na disputa de empregos, julga-se que não mais basta que as pessoas sejam genericamente “qualificadas” para um exercício profissional, mas que revelem individualmente um grau de competência que a mera qualificação escolar não garante. (AZANHA, 2006, p. 177-178).
A cultura do desempenho responsabiliza os atores educacionais pelos medíocres resultados do ensino, assim, a cada momento os conclama a prestar contas accountability de suas “competências”, mede resultados, estabelece estratégias, fixa metas e estimula a produção por meio da “meritocracia” com pequenas premiações financeiras. No fundo, considera que o professor é uma máquina, arcaica e preguiçosa; o aluno é um atleta a ser adestrado; a escola é uma empresa que fabrica produtos de conhecimento para o mercado; este é o grande a priori metafísico.