EXPERIÊNCIA COLETIVA DOCENTE

Autores/as: DIANA VIDAL

O termo experiência é definido na maior parte dos dicionários brasileiros como o ato de experimentar e também como uma forma de conhecimento não organizado, ou de sabedoria adquirida de maneira espontânea. Essa definição é sistematizada pela Sociologia francesa, nos anos de 1990, para designar a heterogeneidade de lógicas, regras e valores, a distância subjetiva entre os atores sociais e o sistema, e a dissolução da ação e da cultura comunitária na contemporaneidade. Assim, para François Dubet (1994), é a experiência social, construída pelos próprios atores, que passa a dar unidade às significações da vida social e por isso se torna um dos objetos essenciais da área. Contudo, é na História que essa noção adquire amplo uso para demonstrar a produção do conhecimento e/ou da consciência a partir de vivências, construídas subjetivamente e conformadas por condições sociais, trajetória recuperada por Raymond Williams (2007) ao analisar a tradição anglo-americana do termo. Nessa perspectiva, ganham evidência os trabalhos de E. P. Thompson e sua concepção de experiência como chave para a mediação entre estrutura social e consciência social. Para o autor (1981, p. 189), “As pessoas não experimentam sua própria experiência apenas como ideias (…). Elas também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos na cultura (…)” (THOMPSON, 1981, p. 182). Instância de coesão social, nem sempre consciente, a cultura assume lugar privilegiado sob a pena do historiador e convida-o a considerar que a experiência é simultaneamente individual e coletiva. É essa percepção que lhe permite afirmar a relativa autonomia do sujeito (não sua total liberdade) em relação aos determinismos de classe. Não é possível, também, desconsiderar a relação que Thompson estabelece entre necessidades e interesses, por um lado, e antagonismos, por outro, nas situações experimentadas (inclusive nas relações produtivas). As experiências se produzem no jogo das tensões sociais.

Nesses termos, compreender a docência como uma experiência coletiva, no diálogo com Thompson, significa tomá-la a partir de pelo menos três elementos, de acordo com Diana Vidal (2010): 1) a trajetória escolar; 2) a relação intersubjetiva com diferentes atores sociais (e escolares); e 3) a confrontação dos sujeitos com as condições materiais da existência e do trabalho docente.

Trajetória escolar remete ao conjunto da experiência acumulada pelo sujeito professor/a ao longo de sua vida. Isso envolve saberes e modelos formadores. Pretende-se compreender a produção das práticas docentes no amplo ciclo da escolarização, o que suscita não apenas a insistência no estudo da importância das instituições de formação, mas também o interesse em conhecer as experiências escolares vivenciadas em diferentes ocasiões. Tem por pressuposto que, antes de se tornarem docentes, os sujeitos constituíram-se como alunos/as. O investimento implica em alargar a análise para todo o período passado nos bancos escolares, compreendendo a escola como lugar amplo de difusão de modelos culturais, como, por exemplo, distintos modelos (positivos e negativos) de docência. Ser aluna/o, assim, ajuda a produzir a identidade docente enquanto parte de seu processo múltiplo, diferenciado e contínuo de construção. O procedimento incita a perceber essa (re)construção na urdidura do trânsito desses sujeitos nos vários espaços de sociabilidade com os quais conviveram e remete aos significados tramados nas relações intersubjetivas que estabeleceram ao longo de suas vidas. Essa segunda dimensão da experiência docente realiza-se entrelaçando diferentes atores sociais (e escolares) em distintos níveis e em variados espaços de sociabilidade, na compreensão de que o magistério se constrói pela convivência cotidiana docente no interior (ou fora) da escola e da troca de aprendizagens elaboradas na solução de fazeres ordinários. Atentar para a subjetividade na construção da experiência coletiva docente reforça considerações traçadas por Maurice Tardif e sua equipe (1991) sobre a importância dos saberes da prática, da gerência das situações de sala de aula e da relação cotidiana com alunas/os como fundamentos do exercício e da competência profissional. Marília Carvalho (1999) chegou a conclusões semelhantes para investigações realizadas no Brasil, ao afirmar que o aprendizado, fruto do exercício profissional, era mais valorizado pelos professoras/es que os conhecimentos apreendidos nas instituições formadoras.

A terceira dimensão diz respeito à materialidade da escola (objetos com os quais professores e professoras lidam cotidianamente como livros, cartazes, globos, dentre outros), ao espaço escolar (sala de aula, tamanho da escola, trabalho em uma ou duas escolas), ao tempo escolar (da aula, da permanência diária, semanal, anual na escola, da permanência na carreira, tempo histórico), à carreira (salário, projetos individuais, expectativas de ascensão, participação em associações sindicais) e às urgências da classe (síntese e negociações). Investigações brasileiras sobre o caráter coletivo da ação e da organização docente vêm mostrando a relação intrínseca entre esses elementos para o conhecimento dos processos pelos quais professoras e professores reconhecem e avaliam aquilo que os faz agir juntos, as concepções que os aglutinam e/ou separam ao longo de sua constituição enquanto atores coletivos (VIANNA, 1999).

Gostaríamos de acrescentar mais um elemento: a experiência docente como processo de produção de identidades, “processos pelos quais sujeitos são criados” (SCOTT, 1999, p. 48). Recorremos à definição de experiência forjada por Joan Scott porque consideramos que os sujeitos “não são indivíduos unificados, autônomos, que exercem o livre arbítrio, mas, ao contrário, são sujeitos cujo agenciamento é criado através de situações e posições que lhes são conferidas.” (SCOTT, 1999, p. 42). Assim, o magistério se produz nas experiências docentes e elas são necessariamente tensionadas pelas condições materiais e subjetivas que remetem aos modos coletivos de entender e validar a docência e às desigualdades sociais que a configuram nas suas mais variadas dimensões, entre elas, as de classe, etnia, geração e gênero. Essas experiências coletivas docentes são constituídas na cultura, nas instituições de formação, na convivência cotidiana com colegas e comunidade e nos vários percursos de escolarização seguidos.

Bibliografia

CARVALHO, M. Ensino, uma atividade relacional. Revista Brasileira de Educação, Rio de janeiro, n. 11, p. 17-32. maio/ago. 1999

DUBET, F. Sociologie de l´expérience. Paris: Édition du Seuil , 1994.

SCOTT, J. Experiência. In: SILVA, A. S. et al. (Org.) Falas de gênero:teorias, análises e leituras. Florianópolis: Mulheres, 1999. p. 21-55.

TARDIF, M. et al. Os professores face ao saber: esboço de uma problemática do saber docente. Teoria & Educação, Porto Alegre, n. 4, p. 215-233, 1991.

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

VIANNA, C. Os nós do nós:crise e perspectivas da ação coletiva docente em São Paulo. São Paulo: Xamã, 1999.

VIDAL, D. A docência como uma experiência coletiva: questões para debate. In: DALBEN, A., DINIZ et al. (Org.). Convergências e tensões no campo da formação e do trabalho docente:didática, formação de professores, trabalho docente.Belo Horizonte: Autêntica, 2010. p. 711-734.

WILLIAMS, R. Palavras-chave. São Paulo: Boitempo, 2007.