INTENSIFICAÇÃO DO TRABALHO DOCENTE
O conceito de intensificação do trabalho deriva do processo de trabalho, pois se refere ao ato de trabalhar, ou seja, o grau de dispêndio de energias realizado pelos trabalhadores na atividade concreta (DAL ROSSO, 2008, p. 20). A intensificação se reporta ao trabalhador individualizado ou ao coletivo de trabalhadores, portanto, aos sujeitos do trabalho. Deles é exigido um empenho maior, seja físico (corpo), intelectual (acuidade mente/saberes) ou psíquico (emocional/afetividade), ou uma combinação desses elementos (DAL ROSSO, 2008, p. 20-21). Ainda se considera, na análise da intensificação, aspectos como: as condições de trabalho; as relações de cooperação entre os próprios trabalhadores; a transmissão de conhecimento que ocorre entre eles no processo de trabalho; e as relações familiares, grupais e societais, que acompanham o trabalhador no seu cotidiano e refletem no espaço do trabalho, como potencialidades ou como problemas. Nesse sentido, é o trabalhador em sua totalidade de pessoa humana que desenvolve a atividade (DAL ROSSO, 2008, p. 21). A intensificação, para Del Rosso (2008), significa trabalhar mais densamente, ou simplesmente trabalhar mais, (…) supõe um esforço maior, um empenho mais firme, um engajamento superior, um gasto de energias pessoais para dar conta do plus, em termos de carga adicional ou de tarefa mais complexa (DAL ROSSO, 2008, p. 22). Essa complexificação pode se expressar no aumento do número de tarefas a serem realizadas, na mesma unidade temporal, por uma mesma pessoa ou equipe. Resultarão desse esforço a mais dos trabalhadores com o ato de trabalhar um desgaste também maior, uma fadiga mais acentuada e correspondentes efeitos pessoais nos campos fisiológico, mental, emocional e relacional (DAL ROSSO, 2008, p. 23).
A intensificação do trabalho docente tem sido objeto de estudo de alguns pesquisadores como Apple (1989), Hargreaves (1995), Oliveira (2005; 2008); Garcia e Anadon (2009), entre outros. Apple (1989) descreve o fenômeno da intensificação do trabalho docente em seus estudos sobre os movimentos de reforma educacional nos Estados Unidos, nos anos 1980. Para Apple (1989, p. 48), a intensificação do trabalho docente representa uma das formas pelas quais os privilégios de trabalho dos(as) trabalhadores(as) da educação são deteriorados. Para esse autor, isso ocorre de forma trivial e mais complexa, pois inclui desde a falta de tempo de tomar um cafezinho e relaxar, ou seja, a falta de tempo para o descanso, que cada vez mais se comprime, até uma ausência total de tempo para se manter em dia com o próprio campo profissional, como atualizar-se. Esse autor encontrou em suas pesquisas, nas escolas americanas, docentes realizando tarefas fora do seu horário de trabalho, durante a hora do intervalo, antes do horário do início das aulas e depois do término da jornada de trabalho. Apple (1989, p. 49) alerta também que a intensificação interfere na autonomia e na sociabilidade dos professores. No primeiro caso, no que se refere à autonomia, esse autor explica que o excesso de trabalho pode forçar o professor a buscar atalhos, fazê-los eliminar o que lhes parece incoerente com o tamanho da tarefa que têm à frente, ou mesmo repassar certas incumbências a especialistas que estão fora da instituição, fazendo com que o professor perca o controle sobre o próprio trabalho. Nesse caso, cita, como exemplo, a produção de material didático e instrucional que pode passar a ser elaborado em outras instâncias e não mais fazer parte do planejamento individual ou coletivo dos docentes das escolas (APPLE, 1989, p. 49-50). No segundo caso, relativo à sociabilidade, Apple (1989) assinala que não há tempo para interação entre os pares e a realização de planejamento conjunto, ou seja, o risco de isolamento e o desgaste aumentam. Esse autor chama a atenção ainda para o comprometimento que a intensificação do trabalho traz para a qualidade da educação.
As pesquisas realizadas por Hargreaves (1995) corroboram com os aspectos levantados por Apple (1989), que compreende a intensificação do trabalho docente como a redução de tempo de descanso do professor; a carência de tempo para manter-se atualizado; a sobrecarga crônica e persistente de tempo, reduzindo as possibilidades de os docentes participarem de planejamento em longo prazo e do controle sobre o próprio trabalho; e, finalmente, a redução da qualidade do serviço, quando se fazem cortes ou se eliminam atividades, para se ganhar mais tempo (APPLE, 1989, p. 142-161). Para esse autor, trata-se de ocupar objetivamente o tempo dos docentes com tarefas e atribuições demandadas pelas instâncias administrativas e relacionadas ao ensino e à gestão dos currículos e da escola, motivados por questões relacionadas à produtividade e ao controle. Dessa forma, a fim de garantir a efetiva utilização produtiva do tempo de trabalho, têm-se utilizado especialmente a vigilância direta e o controle burocrático dos docentes. Hargreaves (1995) registra ainda o processo de autointensificação do trabalho docente. Ele vai constatar que as elevadas expectativas e as demandas urgentes que acompanham as reformas educacionais e os processos de avaliação externos têm levado os professores a uma busca de níveis praticamente inalcançáveis de perfeição pedagógica, que eles mesmos fixam. Esse autor afirma que, em alguns casos, o trabalho chega a converter-se quase em obsessão. Na concepção do referido autor, a autointensificação se justificaria, principalmente, pelo comprometimento do professor com o seu trabalho, associado ao desejo de responder às várias demandas (muitas vezes, fora do âmbito pedagógico) e à falta de condições de trabalho para atendê-las de modo satisfatório. Para Hargreaves (1995), são muitas as mudanças no trabalho docente na atualidade que são compatíveis com a tese da intensificação, principalmente a crescente demanda por prestação de contas; mais responsabilidades referentes a aspectos sociais relativos aos discentes; múltiplas inovações tecnológicas; e o importante incremento do trabalho administrativo, que, entre outras, atestam os problemas de sobrecarga de trabalho. Com esse quadro, Hargreaves (1995) afirma que o lado perverso da intensificação vem à tona, pois a impossibilidade de responder a todas as questões que emergem causa sofrimento, insatisfação, frustração, cansaço e adoecimento.
Para Oliveira (2006, p. 213), a intensificação do trabalho assume características específicas na realidade latino-americana. Essa autora descreve três dimensões em que pode ser verificada a intensificação do trabalho docente. Uma primeira, que ocorre na própria jornada de trabalho e se caracteriza por estratégias mais sutis e menos visíveis de exploração, ou seja, os docentes tendo que assumir novas funções e responsabilidades, a fim de responder às exigências dos órgãos do sistema, bem como da comunidade, advindas das reformas educacionais e que se aproximam das descritas anteriormente. Essas novas práticas são identificadas, segundo essa autora, pela pedagogia de projetos, transversalidade dos currículos, avaliações formativas, entre outras. Nesse sentido, os trabalhadores docentes se sentem forçados a dominar novos saberes e buscar, mesmo com o tempo comprimido, novas competências para o exercício da sua função. Outro aspecto identificado por Oliveira (2006, p. 214) como intensificação do trabalho se refere à ampliação da jornada individual de trabalho em razão de o docente assumir mais de um emprego. Segundo essa autora, os professores que trabalham em escolas públicas costumam assumir mais de uma jornada de trabalho como docentes, em diferentes estabelecimentos públicos e/ou privados. Um mesmo professor leciona em dois ou até três estabelecimentos distintos, em geral, por necessidade de complementação do salário, tendo em vista que a remuneração do magistério na América Latina é muito baixa, comparativamente a outras funções exigentes de formação profissional similar. Uma terceira forma de intensificação do trabalho docente, demarcada por Oliveira (2006, p. 214), é aquela decorrente da extensão da jornada dentro do próprio estabelecimento escolar em que o profissional atua. Trata-se de um aumento das horas e carga de trabalho, sem qualquer remuneração adicional. Ou seja, as atividades docentes extrapolam a jornada de trabalho e o profissional é obrigado a levar trabalho para casa (OLIVEIRA, 2006, p. 214-215).
Os estudos de Garcia e Anadon (2009) dão ênfase, especificamente, ao que se refere à intensificação do trabalho docente ser resultado de uma crescente colonização administrativa das subjetividades das professoras e das emoções no ensino, sendo indícios desse fenômeno a escalada de pressões, expectativas, culpas, frustrações, impelidas burocraticamente e/ou discursivamente, em relação àquilo que as professoras fazem ou deveriam fazer, seja no ambiente escolar ou mesmo fora da escola (GARCIA; ANADON, 2009, p. 71). Essas autoras, em suas pesquisas, verificaram que as reformas dos anos 1990, no Brasil, elegeram como retórica, entre outros aspectos, as emoções e subjetividades das professoras, a fim de instituírem certos ordenamentos nos currículos e no ensino e buscar a aquiescência e o engajamento dos docentes a essas reformas. Essa retórica conclama os docentes a tomarem para si a responsabilidade por suas vitórias e fracassos e a dividir com o poder público a gestão dos diversos problemas enfrentados pela escola, mesmo aqueles que ultrapassam seus muros. A intensificação do trabalho é confundida com o profissionalismo, sentimento este que é estrategicamente mobilizado pelas exigências oficiais de profissionalização docente e pelo apelo a uma ética de autorresponsabilização moral e individual pelo sucesso da escola (GARCIA; ANADON, 2009, p. 82-83).
A intensificação do trabalho docente está registrada como tendência do trabalho docente na atualidade, em várias pesquisas, não importando o nível ou as etapas, ou seja, está presente no trabalho dos professores na educação superior (graduação e pós-graduação) e na educação básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio).