PROFISSIONALIDADE DOCENTE
Profissionalidade designa primordialmente o que foi adquirido pela pessoa como experiência e saber e sua capacidade de utilizá-lo em uma situação dada, seu modo de cumprir as tarefas. Instável, sempre em processo de construção, surgindo do próprio ato do trabalho, ela se adapta a um contexto em movimento. (…) Ela requer uma aprendizagem permanente e coletiva de saberes novos e em movimento e se situa em um contexto de reprofissionalização constante. Ligada às interações no seio do mundo profissional, a profissionalidade leva mais em conta a história pessoal, social, técnica e cultural do indivíduo. Contrariamente à qualificação, ela evoca explicitamente a motivação, o sistema de valores e introduz no domínio profissional o que se origina no domínio privado (COURTOIS, 1996, p. 172).
Dentro do quadro do trabalho docente, a discussão do termo profissionalidade apresenta uma dupla dificuldade. A primeira ligada ao próprio termo, profissionalidade, ainda em plena estruturação conceitual no domínio da sociologia das profissões. A segunda se situa no lado do trabalho docente, também ligado ao conceito de profissão, de história bem mais longa, mas ainda não tendo conseguido uma concepção consensual entre seus numerosos estudiosos, acentuando-se a dificuldade quando se refere ao magistério (LÜDKE, 1983; 1996; LÜDKE; BOING, 2004; 2007). O termo profissionalidade na educação pode representar uma abertura, uma ampliação no âmbito da discussão sobre o tema, ao lado de outros termos como socialização e desenvolvimento profissional, profissionismo, profissionalismo e condição docente. A base desses e de outros conceitos paralelos se encontra na noção seminal de identidade, tratada em vários trabalhos por Dubar (1991; 1998; 2002), que insiste em deixar esse conceito também aberto à dinâmica das sociedades. Ele vincula a construção da identidade pessoal, de cada indivíduo, à sua inserção no mundo do trabalho. Profissionalidade, portanto, é uma ideia ligada a uma realidade em acelerada mutação.
Para Weiss (1983), o termo é tipicamente italiano e passou a ser empregado como alternativa aos conceitos de métier e de profissão. Chamando-o de conceito poliédrico, Weiss apresentou algumas definições de natureza léxica e discutiu suas implicações nas carreiras profissionais. Segundo essa primeira referência, a profissionalidade está relacionada às contribuições específicas do fator trabalho nas empresas que buscam renovar seus modelos de produção. Tem a ver, também, com a capacidade de o trabalhador intervir como agente no ciclo de produção, diz respeito ao saber fazer e ao saber interpretar a cadeia produtiva em que está inserido.
Em meados dos anos noventa, ressaltaram-se as implicações da profissionalidade para a formação profissional. Courtois et al. (1996) analisaram as recomposições identitárias em empresas de base tecnológica. Em seu estudo, procuraram traçar um paralelo entre profissionalidade e qualificação. Partiram de características comuns para apontar certas nuances que abriam espaço para a consideração da profissionalidade frente às transformações dos processos de produção tecnológica. Para os autores, as semelhanças estão relacionadas às competências, que tanto a qualificação quanto a profissionalidade buscam mobilizar dentro de cada carreira profissional. As diferenças, por outro lado, só podem ser entendidas no contexto de cada empresa. Dessa forma, a qualificação para o trabalho é suficiente em empresas industriais de grande porte, que seguem uma organização taylorista de produção, administradas de forma centralizada, com salários escalonados de acordo com a formação e o tempo de serviço. Nesse modelo de empresa, o sindicalismo de massa é forte, verificam os autores. Diferentemente, a profissionalidade surgiu justamente em setores onde o sindicalismo não tinha a mesma voz, já que a produção era baseada em pequenas unidades produtivas, organizadas de forma descentralizada, mais ligada ao setor de serviços. Tais empresas necessitavam de maior flexibilidade em relação aos tradicionais grupos profissionais, buscando manter em seus quadros trabalhadores mais polivalentes.
A ideia de profissionalidade chegou até nós a partir de sua aclimatação francesa, que tornou esse termo de uso mais amplo, menos restrito ao contexto empresarial, como foi o caso da Itália, onde nasceu. Bourdoncle e Mathey-Pierre (1995) dão testemunho da abrangência desse conceito na França. Nesses autores, é possível reconhecer referências a trabalhos vinculados a estudos sobre identidade e socialização profissionais no campo da sociologia das profissões, como já assinalamos. No contexto do desenvolvimento profissional, profissionalidade passou a significar o que existe de potencial e expectativa nas carreiras profissionais. Como as expectativas são construções sociais em torno das diferentes profissões, a sociologia das profissões, na França, procurou fazer a ponte entre aspectos pré-profissionais e profissionais propriamente ditos que até então vinham separados pela formação. Por aí se entende a profissionalidade antecedendo, acompanhando e se sucedendo à própria formação.
A profissionalidade docente põe em jogo a dimensão afetiva e talentos pessoais, de um lado, e a construção social do trabalho do professor, de outro. Essa ideia supõe uma abrangência e uma fecundidade consideráveis em sua inevitável imprecisão. Ela reúne os componentes de formação aos de desempenho no trabalho, sempre em confronto com um referencial coletivo vinculado ao grupo ocupacional. Ela oferece boas possibilidades de assegurar ao profissional uma autonomia que não descambe para uma injusta responsabilização pessoal, com o risco de passar por uma formação aligeirada e acabando por desembocar numa precarização do magistério. A profissionalidade, enfim, com tudo o que carrega de potência, representa um horizonte para o qual convergem sonhos, desejos, expectativas, trabalho, esforço, crenças, compromisso, como é próprio das utopias.