RELAÇÕES DE PODER E EDUCAÇÃO

Autores/as: MARISA RIBEIRO TEIXEIRA DUARTE

Historicamente a sociologia e a filosofia política estabeleceram diferentes interpretações para o termo poder. As correntes teóricas basilares que o diferenciam são: a substancialista, a subjetivista e a relacional (BOBBIO, 1987). A corrente substancialista interpreta que a constituição do poder é decorrente da utilização de um elemento (recurso) para se atingir objetivos determinados. Por sua vez, a subjetivista admite, na interpretação da constituição do poder, a habilidade na produção de efeitos desejáveis e o alcance de objetivos. Já a corrente relacional assume a interpretação do poder como algo disseminado na estrutura social, pois, segundo essa corrente, ele está na relação entre os sujeitos. Por sua vez, a multiplicidade e a ausência de consenso sobre os significados do termo admitem a permanência nas ciências sociais de inúmeras discussões a respeito, convidam a estudos que permitem aproximações entre poder e educação.

Lakehal (2005) observa que, na atualidade, o estudo das relações de poder ocorre predominantemente nos quadros da “cidade” a partir da divisão social do trabalho, de seus conflitos e interesses antagônicos. Nesse sentido, o foco da reflexão conduziu-se para o poder organizado enquanto autoridade, onde uns dirigem e outros se submetem, mas há, também, relações de poder que ordenam relações desiguais, que dividem e diferenciam os grupos sociais. Indivíduos ou grupos abdicam, reivindicam ou são expulsos “do poder”, este pode ser dividido, centralizado, concentrado. Clastres (1988), por sua vez, alerta que, nas formas estatais pré-modernas, a vida das pessoas confunde-se com a vida política e o poder se faz como coação “de um todo unificado”, ou seja, o todo, o comunal é o oposto do “um”, que é recusado. O chefe não está a serviço da sociedade, é a sociedade em si mesma – verdadeiro lugar do poder, que exerce como tal sua autoridade sob o chefe.

Já, na Idade Média, emergia a compreensão do poder como algo da esfera do segredo, que diferentes sujeitos e/ou instituições detinham.  A fonte de poder se exteriorizava em relação à vida social e se diferenciava, pelo sagrado, pelo mistério, pela pertença a um domínio. As educações e suas instituições tornaram-se meio de constituição e de legitimação das hierarquias e segmentos do poder social, pois se constituíam como instâncias de revelação do sagrado, do oculto.

Entretanto, é na modernidade, com a distinção entre Estado e sociedade civil, onde inscrevemos a separação entre os indivíduos e o soberano, que o poder configura-se como externalidade. No foco das atenções contemporâneas, as relações entre poder e educação envolvem o reconhecimento das possibilidades inscritas na ação política para ultrapassar as situações dadas. Por um lado, uma tradição sociológica o vê como expressão da estrutura social sobre indivíduos, grupos ou classes. É esta quem produz o sentido do exercício das vontades e desse modo trata-se de transformar radicalmente as estruturas, nelas incluídas as codificações simbólicas. A ação educacional sistematizada ou não passa a ser vista como instituição de afirmação e reprodução das estruturas socioeconômicas.  Em outra perspectiva, a tradição da sociologia política o tem como configurador de estruturas de dominação seja como relações hierárquicas (baseadas no predomínio e no conflito) sejam como interações voltadas para a consecução de interesses (NOBRE et al., 2008).

É possível distinguir dois campos conceituais em torno dessa concepção de poder de inspiração weberiana (PERISSINOTTO, 2008). Aqueles que o definem como interação entre atores conscientes dos seus interesses e do caráter antagônico de suas preferências e aqueles que o definem como uma relação social institucionalizada, em geral, a revelia da consciência dos atores. Na primeira acepção, exercem poder aqueles que conseguem impor ao outro o curso desejado da ação, poder é uma relação social de conflito (de imposição/de resistência). Nessa perspectiva, temos uma apreensão das relações de educação como ação entre dominantes e dominados: educação popular versus outra das elites. Uma segunda vertente considera que o poder não se manifesta apenas em relações marcadas pelo conflito, as relações de poder inscrevem-se também enquanto capazes de formular consensos. Duvidar dos consensos deve ser o ponto de partida para analisar relações de poder. Nessa perspectiva, Foucault constituirá as questões chaves sobre as relações entre saber (como produto das educações) e poder (CÉSAR, 2009). Foucault insistirá em que não há verdade fora do poder ou sem o poder, pois toda verdade (enunciação) gera efeitos de poder e este, por sua vez, legitima-se em saberes considerados verdadeiros.

Desse modo, diferentes atribuições de significado ao termo “poder” associam-se com diferentes concepções sobre a dimensão política do fenômeno educativo. Na ótica substancialista, o poder na/da educação apresenta-se mediante recompensas ou sanções demonstradas nas práticas pedagógicas. Antagonismo de interesses configurariam a formulação e implementação de políticas educacionais – entendidas em sua formulação clássica como programas de ação governamental – dirigidas aos diferentes públicos a serem educados. Para alguns intérpretes, o Estado e a administração pública emergem como o outro dos indivíduos, dos atores coletivos, ou, mais amplamente, da sociedade civil, por ser capaz de impor preferências valendo-se de recursos que lhe estão disponíveis. Seja o Estado aparelho da classe dominante ou expressão de universalidade, as políticas estatais (educacionais incluídas) impõem-se sobre os particularismos restringindo-os. Nesse caso, importa à análise sociológica apreender quais os atores capazes de agenciar os recursos (materiais e simbólicos) necessários à formulação e implementação de um determinado programa ou política. Na perspectiva subjetivista, educação e escola são ações/lugares onde, mediante coerções, desenvolve-se nos indivíduos saberes e práticas, produzindo uma espécie de consciência coletiva necessária à vida em sociedade.  São as normas da vida coletiva que emergem sob as pessoas como educação, de modo sistematizado ou não. As relações de poder presentes nos processos educacionais são obnubiladas e legitimadas por um imperativo: a educação necessária à vida social. Nessa linha de pensamento, a defesa da obrigatoriedade escolar como meio de socializar os mais jovens nos valores normativos da sociedade além de atribuir competências e distribuí-las segundo o mérito de cada um.

Para Bourdieu e Passeron (1975), o exercício do poder/dominação funcionaria de duas formas no campo educacional: se a ação pedagógica é condição essencial de socialização das pessoas, é, ao mesmo tempo, condição básica de criação da identidade de cada grupo social. (BARBOSA, 2008). Desse modo, a educação/socialização nada mais faz que legitimar desigualdades ao obnubilar capacidades diferenciadas de mobilizar recursos. A instituição escolar constituiu-se como um fator de reprodução da ordem capitalista e não de democratização, pois legitima produtos simbólicos provenientes dos grupos sociais dominantes.

Esse mesmo resultado é reafirmado na corrente relacional onde toda ação educativa circunscreve-se no cerne das relações sociais e, portanto, está inscrita como relação de poder. A partir de Foucault, a educação não seria mais a mesma (CÉSAR, 2009). A escola é um dos lugares privilegiados de governamento do eu, de produção do(s) sujeito(s) disciplinarizado(s). O poder seria exercido de maneira mais fluida, capaz de pôr em ação sobre os indivíduos adestramentos psíquicos e comportamentais. A educação escolar torna-se instituição capaz de articular a formação do sujeito e o desenvolvimento do Estado. O poder é ação educativa, as tentativas de produzir diferentes modos de subjetivação do ser humano.

Bibliografia

BARBOSA, M. L. O poder na sociologia francesa ou a força da regra. In: NOBRE, R. F. (Org.) O poder no pensamento social: dissonâncias. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008.

BOBBIO, N. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

BOURDIEU, P.; PASSERON, J. C. A reprodução:elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

CESAR, M. R. A. Pensar a educação depois de Foucault. Cult, São Paulo, n.134, p. 54-56. 2009.

CLASTRES, P. A sociedade contra o estado:pesquisas de antropologia política. 4. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves,1988.

LAKEHAL, M. Dictionaire de science politique. 2. ed. Paris: L’Harmattan 2005.

NOBRE, R. F. et al. Poder no pensamento social: preâmbulo. In: NOBRE, R. F. (Org.) O poder no pensamento social: dissonâncias. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008.

PERISSINOTTO. R. M. Poder: imposição ou consenso ilusório. In: NOBRE, R. F. (Org.) O poder no pensamento social: dissonâncias. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008.