REPRODUÇÃO SOCIAL

Autores/as: ANA PAULA HEY

A perpetuação da ordem social implica em um conjunto de ações e mecanismos sociais orientados na direção de assegurar sua reprodução. No entender de Marx, ao garantir a reprodução material, a sociedade deverá avalizar também sua reprodução cultural e ideológica. Assim, para ele, há processos de reprodução dos meios de produção, da força de trabalho e das relações sociais de produção. Uma clássica passagem de A ideologia alemã resume essa perspectiva: as ideias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual. As ideias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, as relações materiais concebidas como ideias; portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto, as ideias de sua dominação (MARX; ENGELS, 1977, p. 72). Em uma perspectiva relacional, Pierre Bourdieu (1974) vai tratar da reprodução social a partir da reprodução cultural, desvelando mecanismos de reprodução da estrutura das relações de força e das relações simbólicas entre as classes. Com isso, remete-nos às seguintes indagações: o que faz com que a ordem do mundo, tal como está, com seus sentidos, obrigações e sanções, seja respeitada? Por que a ordem estabelecida, com suas relações de dominação, seus direitos e suas imunidades, perpetua-se? Por que as mais intoleráveis condições de existência podem ser vistas como aceitáveis ou naturais? Pensar a reprodução social com Bourdieu implica pensar nas relações entre poder material e simbólico, uma vez que incorporamos, sob a forma de esquemas inconscientes de percepção, de apreciação e de ação, as estruturas da ordem social. Para ele, a reprodução social não se dá apenas pela posse do capital econômico, mas também pela detenção do capital cultural, sendo que este último torna-se a principal estratégia de reprodução nas sociedades avançadas. Capital cultural é entendido tanto como a incorporação intransferível de capacidades cognitivas quanto a posse de bens e certificados que garantem vantagens àqueles que os detêm. Esse novo capital transfigura-se como inato, encobre seu longo processo de aquisição e atua por legitimar privilégios sociais herdados. Para que os processos de reprodução social se realizem, acirram-se os modos de dominação. Estes podem ser entendidos como “aquilo que permite a uma ordem social reproduzir-se no reconhecimento e desconhecimento da arbitrariedade que a institui” (Pinto, 2000, p. 169). A forma como a sociedade organiza-se tende a manter uma relação entre dominantes e dominados, em que estes últimos submetem-se à ordem social percebida de modo pré-reflexivo como ordem das coisas. Há um processo de naturalização daquilo construído socialmente, visando inscrever essas produções na natureza do humano, daquilo que não deve ser modificado porque sempre foi assim. É o estabelecimento de uma ‘magia social’, em que os processos de produção de diferenças ou de reprodução delas são entendidos como dados, escondendo a arbitrariedade da lógica social que a institui. Reprodução social nos remete à reprodução cultural e aos modos de dominação engendrados no mundo social que garantem esse ciclo. No caso da reprodução cultural, Bourdieu (1976) foca-se no sistema escolar para tentar desvelar a reprodução das desigualdades. As formas elementares de dominação centram-se na dominação direta, de uma pessoa sobre outra, em que há a necessidade da criação de uma ligação pessoal para que se ganhe a apropriação do trabalho, dos serviços, dos bens, das homenagens, do respeito dos outros, tendo como exemplo ideal a escravidão. Todavia, quanto mais a sociedade se organiza em bases mais sofisticadas, típico das sociedades avançadas, mais a reprodução das relações de dominação se complexificam; quanto mais se utilizam mecanismos objetivos, mais as estratégias objetivas orientadas em direção à reprodução da ordem estabelecida são indiretas e impessoais. Em suma, o princípio de perpetuação da relação de dominação reside em instâncias como o Estado e a escola, entendidos como lugares de elaboração e de imposição de princípios de dominação que se exercem dentro mesmo do universo mais privado, das relações pessoais (Bourdieu, 1998). O sistema de ensino é visto como lócus desse tipo de dominação indireta: é escolhendo o melhor estabelecimento escolar para seus filhos que a família – enquanto detentora de capital econômico ou cultural – assegura a relação de dominação que a une objetivamente ao mundo social, garantindo as chances objetivas de reprodução da posição social da família na estrutura de distribuição das classes e frações de classe. Para se compreender como se perpetua a ordem social, necessita-se construir um quadro do sistema deestratégias de reprodução (estratégia de investimento biológico, de sucessão, educativas, de investimento econômico, social, matrimoniais, de investimento simbólico e estratégias de sociodiceia) e do sistema dosmecanismos de reprodução (mercado de trabalho, direito de sucessão, direito de propriedade, instituições escolares). Nas sociedades avançadas, as disposições à reprodução e as estratégias de reprodução que elas engendram apoiam-se nas estruturas de um Estado organizado, em que as mais importantes do ponto de vista da reprodução são as da instituição escolar. Aliás, esta é chamada a cumprir uma função essencial, já que a dominação é de caráter estrutural: atribuir títulos que são válidos na maioria dos espaços sociais. O sistema escolar engendra classificações que lhe são típicas, porém estas se consagram em classificações sociais. Tais classificações, que se revestem de neutralidade, limitam-se ao registro de diferenças reais entre aptidões naturais (avaliações garantidas por um corpo de profissionais com autoridade legítima e imparcial, aparentando obedecer somente à lei de uma instituição autônoma), obedecem muito mais à lógica de um mundo social calcado em diferenças, realizando um trabalho de triagem e, com isso, mantendo a ordem social preexistente. Bourdieu (1996) afirma que a reprodução da estrutura de distribuição do capital cultural se dá na relação entre as estratégias das famílias e a lógica da instituição escolar. As famílias representam corpos com tendência a perpetuar seu ser social, com todos seus poderes e privilégios, que é a base das estratégias de reprodução. Sendo assim, elas investem tanto mais na educação escolar quanto mais importante for seu capital cultural e quanto maior for o peso deste em relação a seu capital econômico.

Bibliografia

BOURDIEU, P. La domination masculine. Paris: Seuil, 1998.

BOURDIEU, P. O novo capital. In: BOURDIEU, P. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p. 35-48.

BOURDIEU, P. Les modes de domination. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, Paris, n. 2-3, p. 122-132, jun. 1976.

BOURDIEU, P. Reprodução social e reprodução cultural. In: BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974, p. 295-336.

MARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Grijalbo, 1977.

PINTO, L. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social. Rio de Janeiro: FGV, 2000.