VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO
Expressão com larga circulação nos discursos das escolas, dos sindicatos, dos governos, da imprensa e dos partidos políticos, abrange dimensões (1) objetivas regime de trabalho; piso salarial profissional; carreira docente com possibilidade de progressão funcional; concurso público de provas e títulos; formação e qualificação profissional; tempo remunerado para estudos, planejamento e avaliação, assegurado no contrato de trabalho, e condições de trabalho e (2) subjetivas reconhecimento social, autorrealização e dignidade profissional.
É indissociável da problemática do trabalho em sua dupla dimensão: ontologia do ser social (requer que o trabalho seja criativo, crítico, livre de expropriações, subordinações, coerções e regulações particularistas) e relação social capitalista (MATTOS, 2009). A potencialidade ontológica do trabalho docente é particularmente difícil no capitalismo, pois as frações burguesas dominantes procuram subordinar a educação aos seus propósitos estratégicos de classe. As brechas emancipatórias dependem da organização coletiva dos professores, do protagonismo estudantil, das lutas compartilhadas com os pais e com as demais categorias de trabalhadores e a garantia de condições objetivas.
A crença de que os professores, por sua condição de trabalhadores intelectuais, pairam sobre as classes sociais e que, por conseguinte, não podem utilizar as mesmas formas de luta dos demais trabalhadores deve-se, em parte, a uma leitura empobrecida do lugar da escola e da universidade no processo do capital. Muito se escreveu sobre o caráter produtivo ou improdutivo do trabalho docente. Como Marx exemplificou que somente o trabalho docente regulado pelo assalariamento privado é produtivo, muitos concluíram apressadamente que o trabalho dos docentes do setor público, por ser improdutivo, está afastado das injunções do capital e que o problema nodal da valorização do trabalho docente tem de ser buscado quase que exclusivamente no cotidiano escolar e no campo pedagógico. Mas a questão não é simples assim, como demonstrou Frigotto (1984): o trabalho improdutivo segue sendo vital para a reprodução do capital.
Uma correta orientação metodológica tem de articular as dimensões mais gerais do trabalho docente no capitalismo e as particularidades do fazer educacional nas escolas e universidades. A análise da valorização não pode prescindir de variáveis como o nível de ensino (educação infantil, primeiro segmento do ensino fundamental, segundo segmento, ensino médio, tecnológico e superior) e a esfera de atuação: municipal, estadual, federal (setor público) e, em se tratando da esfera privada, a natureza da instituição (confessional, comunitária, empresarial). Considerando as particularidades da docência, a análise da valorização do magistério requer considerar as exigências de formação mínima, as regras de acesso aos cargos e as principais frações de classe em que são recrutados os docentes dos diferentes níveis e modalidades de educação.
A questão da valorização é, portanto, indissociável das relações contraditórias de uma escola capitalista em que sobressaem os nexos Estado-educação e entre o trabalho docente e sua institucionalização e profissionalização. A generalização da escola pública ampliou a massa de docentes como servidores públicos, ainda que de forma muito heterogênea. É nesse processo de expansão do número de trabalhadores docentes que parte dos professores se concebe como trabalhadores e, em alguns momentos, como classe social.
No Brasil, o surgimento das escolas para o povo valeu-se de brutal precarização da docência. O magistério nasce como atividade aviltada em termos de relação de trabalho, intensificação do trabalho e de sua função social e, ademais, subordinada à ingerência da Igreja. Para se tornar membro do magistério era necessário fazer o juramento aos santos evangelhos (ADORNO, 1991). No Império, para tornar o professor um agente do Estado, por meio de uma carreira docente (expressa por regras de exame, seleção e nomeação, bem como de remuneração), o Estado imperial submetia esses trabalhadores à escrupulosa fiscalização (MATTOS, 2004), alargando o controle político por meio de dispositivos clientelistas, inclusive para fazer valer direitos legais. Entretanto, o controle estatal produz contradições e conflitos, visto as próprias expectativas sociais e econômicas dos professores e a personificação, nestes, de enormes anseios de ascensão social por parte dos estudantes e de suas famílias.
A organização corporativa dos professores ganhou maior densidade a partir de 1870, ainda que não na forma sindical. É nesse contexto que surgem no país distintos tipos de imprensa pedagógica que mantêm acesa a demanda de organização dos docentes, como os periódicos A Instrucção Pública, A verdadeira Instrucção Pública, A Gazeta da Instrucção Pública, A Revolução Social. É também nesse contexto que foram criadas as primeiras organizações mutualistas, como o Grêmio dos Professores Primários em Pernambuco, 1879.
Com a Proclamação da República (1889), o quadro não sofreu alterações relevantes imediatas. As autoridades educacionais já sustentavam abertamente a necessidade de contratar professoras econômicas, desprovidas dos mesmos direitos dos professores mais antigos (CAMPOS, 2010). Essa relação conflituosa com o poder público explica a expansão das entidades mutualistas nas primeiras décadas do Século XX. A partir de 1920, o tema da profissionalização docente ganha força, mas não como categoria profissional que compõe a classe trabalhadora. A Associação Brasileira de Educação, fundada em 1924, organiza os chamados pioneiros da educação nova, vale-se de formas de atuação distintas da dos trabalhadores como proclamas públicas, chamados à nação, a exemplo do célebre Manifesto dos Pioneiros (1932) de cariz escolanovista. A hegemonia da Escola Nova desloca a problemática da educação do plano econômico-político para o plano pedagógico. Desse modo, há um refluxo na organização política da luta pela educação pública empreendida por anarquistas, socialistas.
Contudo, a luta pela valorização dos professores não foi apagada pela agenda escolanovista. Após a Constituição de 1946, a problemática da valorização do magistério ganhou maior dimensão, ocorrendo mudanças no âmbito do Estado e na organização dos professores. A criação da SBPC em 1948 serviu de canal de participação de parte dos professores em prol da reivindicação do regime de dedicação exclusiva nas universidades. Em 1951, é relevante destacar a criação da CAPES, dirigida por Anísio Teixeira, que investe na formação de professores para a educação superior, bem como do CNPq, possibilitando a profissionalização dos docentes das universidades.
Na educação básica, grandes sindicatos foram criados ao final do Estado Novo como oposição às entidades associativas de caráter assistencial, entre os quais o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (APEOESP) como alternativa ao Centro Paulista do Professorado e o Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas Gerais (Sind-UTE) em oposição à Associação dos Professores Primários do Estado de MG.
As considerações breves e esparsas sobre a organização dos professores nos permite afirmar que, embora o sindicalismo docente seja uma experiência recente, não é desprovido de uma rica história. Dessas experiências, resultou, no caso da educação básica, um tortuoso e difícil percurso para formar entidades de caráter nacional, algo evidentemente complexo em um país em que inexiste um sistema nacional de educação. O principal marco nesse sentido foi a criação da Confederação dos Professores Primários do Brasil (CPPB), nos anos 1960, que, no geral, manteve relação de colaboração com o governo da ditadura civil militar de 1964, ao trabalhar temas pedagógicos em detrimento da política educacional e dos problemas da carreira e remuneração docentes. No contexto de crise do governo empresarial-militar e do ressurgimento do sindicalismo autônomo, a CPPB foi questionada como ferramenta política do magistério no Encontro Nacional de Professores, convocado com a participação relevante da esquerda, que reuniu em São Paulo entidades de 13 estados (1979), processo que resultou na construção da Confederação dos Professores do Brasil (CPB), que irá incorporar também os professores secundários.
Na educação superior, no mesmo período, final dos anos 1970, foram criadas as Associações Docentes (AD). Em 1978, em reunião da 30a SBPC, reuniram-se diversas AD que deliberaram realizar o I Encontro das Associações de Docentes em São Paulo, 1979. O Encontro contou com a participação de 24 entidades de base, processo que levou à criação da Associação Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES) em 1981, posteriormente transformada em Sindicato Nacional ANDES-SN (1989), um dos sindicatos pioneiros do novo sindicalismo crítico ao sindicalismo de Estado vigente até então.
Tanto a CPB como a ANDES deslocam o protagonismo dos professores do espaço corporativo-pedagógico para o terreno político-reivindicativo, focando a democratização da sociedade, da educação, e fortalecendo o caráter público da educação, exigindo, por meio de métodos próprios do movimento dos trabalhadores, como as greves, carreira, salário, democratização da educação e o fortalecimento do caráter público da mesma. As lutas do Andes-SN possibilitaram a unificação da carreira das universidades autárquicas e fundacionais, no início dos anos 1980, e a definição de um Plano Único de Classificação e Remuneração das IFES em 1987. Na constituinte, as entidades dos servidores unificaram a luta em prol do Regime Jurídico Único (RJU) e as entidades sindicais da área da educação conquistaram a elevação da valorização do magistério (da educação básica e superior) à condição de preceito constitucional (Art. 205): valorização dos profissionais do ensino, garantido, na forma da lei, plano de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, assegurado regime jurídico único para todas as instituições mantidas pela União. (BRASIL, 1988). Com a reforma do Estado de Cardoso (EC nº 19/98), a garantia de regime jurídico único foi retirada da Constituição, medida reafirmada, posteriormente, pelo governo Lula da Silva na Emenda Constitucional que dispõe sobre o FUNDEB (EC nº 53/06).
As lutas em prol da valorização do magistério da educação básica permitiram avanços como a inclusão do tema também na LDB, particularmente no Art. 67: Os sistemas de ensino promoverão a valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos e dos planos de carreira do magistério público: I – ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos; II – aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado para esse fim; III – piso salarial profissional; IV – progressão funcional baseada na titulação ou habilitação, e na avaliação do desempenho; V – período reservado a estudos, planejamento e avaliação, incluído na carga de trabalho, e VI – condições adequadas de trabalho. (Lei nº 9.394/96).
Entretanto, as medidas concretas para implementar a valorização foram insuficientes, beneficiando especialmente os professores que possuíam remuneração irregular abaixo do salário mínimo. A Lei do Fundef (Lei nº 9.424/96) estabeleceu que pelo menos 60% do Fundo deveria ser aplicado na remuneração e valorização dos trabalhadores da educação, índice já praticado no orçamento da maioria dos estados e dos municípios. Ademais, manteve elevada carga horária em sala de aula, impedindo uma das principais reivindicações do magistério: a liberação de 50% da jornada de trabalho para preparação de aulas, correção de trabalhos, reuniões pedagógicas, etc.
A luta pela definição do piso salarial, prevista desde 1988, somente se efetivou 20 anos mais tarde, resultando em um avanço parcial, pois, se a existência de uma lei é positiva, o piso estabelecido e a manutenção da elevada carga horária em sala de aula institucionalizam um grave retrocesso. Com efeito, a Lei nº 11.738/2008 institui o piso salarial profissional nacional, estabelecendo para 2009/2010 o valor de R$ 950,00 mensais para a formação em nível médio, na modalidade Normal, em regime de 40h. Na composição da jornada de trabalho, a lei assegura apenas 30% para atividades extraclasse. Cabe observar que o piso é inferior ao reivindicado no governo Itamar Franco pela entidade que sucedeu a CPB, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), de cinco salários-mínimos, correspondendo atualmente a menos de dois salários. A Lei também não define piso para os professores graduados, que, na prática, estão submetidos ao mesmo piso rebaixado.
Os embates em torno do rebaixado piso salarial confirmam que a valorização do magistério envolve temas que seguem obstaculizando a plena realização do trabalho como ontologia do ser social. A organização autônoma dos trabalhadores da educação segue sendo crucial para a melhoria substancial da carreira, do salário e das condições de trabalho para assegurar que a docência possa ser um labor criativo, emancipado de particularismos e uma profissão reconhecida como estratégica para a democracia e para o bem viver dos povos.