CURRÍCULO: CONCEPÇÕES, POLÍTICAS E TEORIZAÇÕES

Autores/as: ANTONIO FLAVIO BARBOSA MOREIRA

Concepções de currículo: Ainda que a preocupação com o que e o como ensinar sempre tenha constituído intensa preocupação de todos os que se têm dedicado a estudar e a escrever sobre a educação, o foco no currículo é razoavelmente recente, remontando à virada do século XIX para o século XX e expressando a intenção, nos Estados Unidos da América, de responder, por meio de organização do sistema escolar e de seu currículo, às mudanças econômicas, culturais e políticas em processo no país.

Alçado à condição de instrumento de controle social, o currículo foi visto como o instrumento, na escola, capaz de familiarizar os filhos dos imigrantes com as condutas, os valores, as crenças e os costumes que marcavam o cenário cultural estadunidense. Além do cuidado com os aspectos administrativos implicados no desenvolvimento dos currículos, promoveram-se, nesse momento, os primeiros estudos e investigações que fizeram do currículo o foco maior de atenção.

Pode-se dizer que, já nessa oportunidade, o currículo foi considerado o elemento central, na instituição escolar, capaz de contribuir significativamente para que os objetivos previstos fossem alcançados, as experiências planejadas ocorressem e os alunos aprendessem os conhecimentos considerados necessários à sua formação como membros de uma dada sociedade. No currículo, sistematizam-se nossos esforços pedagógicos. O currículo constitui, em outras palavras, o coração da escola, o espaço central em que agimos, o que torna a todos nós, educadores, nos diferentes níveis do processo educacional, responsáveis por sua elaboração.

Se a importância do currículo é hoje indiscutível, sua concepção tem assumido diferentes sentidos, expressando o que, historicamente, entende-se por educação e por um indivíduo educado, e refletindo as influências teóricas hegemônicas. Talvez caiba, então, explicitar alguns desses sentidos e esclarecer o adotado neste dicionário.

O currículo tem sido visto como: (a) os conteúdos a serem ensinados e aprendidos; (b) as experiências de aprendizagem escolares vivenciadas pelos estudantes; (c) os planos pedagógicos elaborados por profissionais da educação; (d) os objetivos a serem atingidos por meio do ensino; (e) os processos de avaliação, que afetam a determinação dos conteúdos e dos procedimentos pedagógicos (MOREIRA; CANDAU, 2006).

A palavra currículo já foi também entendida como um texto, no sentido que lhe confere Fávero “qualquer passagem falada ou escrita que forma um todo significativo independente de sua extensão” (FAVERO, 1991, p. 7). A visão do currículo como um texto refere-se a tudo que se escreve sobre os elementos da prática pedagógica, bem como a tudo o que se faz para desenvolvê-los nas escolas e nas salas de aulas. Ou seja, nessa concepção, incluem-se tanto as intenções relativas ao processo pedagógico como as vivências que o materializam.

As discussões sobre o currículo necessariamente abordam, com maior ou menor ênfase, os conhecimentos escolares, os procedimentos e as relações sociais que conformam o cenário pedagógico, as transformações que desejamos efetuar nos alunos, os valores que desejamos inculcar e as identidades que pretendemos construir. Em outras palavras, discussões sobre conhecimento, verdade, poder e identidade marcam, invariavelmente, as teorizações sobre questões curriculares. (MOREIRA; CANDAU, 2006; SILVA, 1999)

Neste texto, optamos por entender currículo como as experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio a relações sociais, e que contribuem para a construção das identidades de nossos estudantes. Currículo corresponde, assim, ao conjunto de esforços pedagógicos planejados e desenvolvidos com propósitos educativos.

Políticas curriculares: Importante aspecto diretamente influente nas decisões sobre currículo é a política curricular. Para Stephen Ball (1997), a política precisa ser entendida como texto e como discurso. O autor argumenta que não se trata de adotar uma ou outra, mas sim de destacar que uma está implícita na outra. Sustentamos que sua visão de política é útil para a compreensão do que podemos denominar por política curricular.

Ao considerar as políticas como textos, Ball as vê como representações codificadas de modo complexo, em meio a lutas, disputas e alianças, e decodificadas, de forma também complexa, com base nas interpretações, nos significados, nas histórias e nas experiências pessoais dos sujeitos implicados bem como nos recursos e nos contextos em que se elaboram e se implementam as políticas. Para qualquer texto, uma pluralidade de leitores produz, inevitavelmente, uma pluralidade de leituras. Porém, os que elaboram as políticas se esforçam por tentar controlar e garantir, por uma série de meios, a leitura “correta”. Mas os textos – as políticas – nunca são suficientemente claros, fechados ou completos. As influências, discordâncias e negociações em relação a eles podem acarretar uma mistura de significados bem como confusão e disseminação de dúvidas.

Importa acentuar também que políticas, representações e intérpretes autorizados (ministros, secretários, assessores, etc.) mudam com frequência, o que faz com que os propósitos sejam constantemente revistos. Lacunas e espaços para determinadas ações e respostas, então, criam-se e recriam-se permanentemente. Assim, os textos referentes às políticas curriculares que chegam às escolas não surgem de repente, de forma homogênea, nem adentram vácuos sociais ou institucionais. Gestores e docentes constituem importantes mediadores das políticas: suas ações e reações afetam as leituras e os destinos dos textos. Todavia, embora todos esses atores sociais escrevam e interpretem ativamente os textos, suas respostas não se dão em quaisquer circunstâncias. Há restrições em relação às políticas: não se trata de um jogo em que a soma final seja zero. A análise requer, portanto, uma compreensão que se baseie não apenas em restrições ou em ações, mas nas mutáveis relações entre constrangimentos e ações humanas. Daí a necessidade de considerarmos também a política como discurso.

Com base em Foucault, Ball concebe discurso como uma prática que produz o objeto de que fala. O discurso não é sobre um objeto, não identifica um objeto: o discurso é uma fala que constitui esse objeto e, ao fazê-lo, esconde o fato de tê-lo constituído. Não falamos um discurso, ele nos fala, ao nos oferecer certas possibilidades e categorias para o pensamento e ao censurar ou omitir outras, restringindo certas possibilidades de interpretação.

Cabe, desse modo, evitar tanto o “otimismo ingênuo” que negligencia as limitações discursivas, como o “pessimismo ingênuo” que não considera que, em uma sociedade complexa, estamos imersos em uma variedade de discursos dissonantes, incoerentes e contraditórios, assim como em conhecimentos subjugados que não podem ser totalmente excluídos das arenas de implementação da política. Daí a necessidade de conceber a política de currículo como texto e como discurso, ao pensarmos e sugerirmos alternativas (MOREIRA, 2000).

Campo do currículo: Após destacar alguns dos significados atribuídos ao currículo, de esclarecer a nossa preferência por um dado sentido e de apresentar uma determinada visão de política curricular, pode ser útil enfocar a expressão campo do currículo. Recorrendo a Pinar e seus colaboradores (1995), entendemos campo como formado por pessoas cujo trabalho consiste em escrever textos a partir de limites historicamente estabelecidos, bem como de tradições, regras e princípios que seus antecessores definiram como razoáveis. Campos, pessoas, ideias, problemas, teorias e métodos se modificam, não linearmente, em velocidades variáveis e avaliadas diferentemente conforme as circunstâncias e os agentes sociais envolvidos no processo. Em meio a essas transformações, rupturas ocorrem e tradições anteriores se deslocam e se reorganizam em outras problemáticas, com a intensificação de contradições e a emergência de crises (MOREIRA, 1998).

Amparando-nos em Forquin (1983), compreendemos o campo do currículo como a abordagem de determinados fenômenos educativos, como uma forma de pensar a educação que prioriza os conhecimentos escolares e seu tratamento nas escolas e nas salas de aula. Integram-se, nessa visão, questões referentes ao conhecimento escolar e à pedagogia. Nesse contexto, pedagogia é vista como incluindo tanto o ensino como as visões sociais que o norteiam, como referida tanto às questões do tipo “como” quanto às questões do tipo “por que”, relativas aos processos de transmissão, reprodução e produção do conhecimento (GORE, 1993). Currículo e pedagogia, nessa perspectiva, configuram um todo, sendo isoláveis apenas para fins de análise (MOREIRA, 1998).

Teoria do currículo: No campo do currículo, desenvolvem-se estudos e formulam-se teorias. Silva (1999), em sua discussão sobre a teoria do currículo, questiona a visão de que uma teoria representaria algo “lá fora”, anterior à própria teoria – uma coisa chamada currículo. Assumindo outra perspectiva, Silva considera que, ao descrever um objeto, a teoria, de certa maneira, o cria. Faria mais sentido, então, falar não em teoria, mas em texto ou discurso. Como já acentuamos, o discurso produz o objeto de que fala. O que um discurso sobre o currículo efetivamente faz é construir uma determinada noção de currículo. 

Mas, admite Silva, o uso da palavra teoria está tão difundido que não faz sentido ignorá-la. Contudo, alerta: é preciso atentar para seu papel ativo na constituição do que supostamente apenas descreveria.

Uma forma adequada de distinguir as diferentes teorias de currículo é por meio dos diferentes conceitos que empregam. Analisando os deslocamentos ocorridos nesses conceitos, Silva classifica as teorias em tradicionais, críticas e pós-críticas.

Segundo Moreira, Pacheco e Garcia (2004), o campo da teoria curricular é, hoje, mais do que nunca, extremamente dinâmico e atento aos desenvolvimentos teóricos em outros campos. Como exemplos de recentes fertilizações cruzadas, destacamos as teorias da complexidade e as filosofias da diferença com notáveis influências nas teorizações sobre currículo. Da interação das discussões sobre as políticas curriculares e das perspectivas teóricas têm resultado, então, sensíveis avanços no conhecimento dessa figura de proa no cenário educacional – o currículo.

Bibliografia

BALL, S. Education reform: a critical and post-structural approach. Buckingham: Open University Press, 1997.

FÁVERO, L. L. Coesão e coerência textuais. São Paulo: Ática, 1991.

FORQUIN, J. C. Escola e cultura:as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1993.

GORE, J. The struggle for pedagogies:critical and feminist discourses as regimes of truth. New York: Routledge, 1993.

MOREIRA, A. F. B. As contribuições e impasses da teoria curricular crítica. In: CHASSOT, A.; OLIVEIRA, R. J. (Org.) Ciência, ética e cultura na educação. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 1998.

MOREIRA, A. F. B. As reformas curriculares como instrumento de controle da escola, do professorado e do aluno. Cadernos para o Professor, Juiz de Fora, Ano 8, n. 10, p. 6-15, 2000.

MOREIRA, A. F. B.; PACHECO, J. A.; GARCIA, R. L. Currículo:pensar, sentir e diferir. Rio de Janeiro: DP&A, 2004.

MOREIRA, A. F.; CANDAU, V. M. Indagações sobre currículo:currículo, conhecimento e cultura. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2006

PINAR, W. F. et al. Understanding curriculum. New York: Peter Lang, 1995.

SILVA, T. T. Documentos de identidade:uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.