EDUCADOR POPULAR

Autores/as: JOSÉ EUSTÁQUIO ROMÃO

 

Tomando-se a expressão em seu sentido amplo, todo educador e toda educadora é popular, na medida em que toda ação educacional se dirige às camadas sociais, portanto ao povo, buscando a preservação ou a transformação de projetos de nação. De fato, a educação não tem finalidade em si mesma, porque ela é sempre meio para a formulação, implantação e implementação de projetos sociais.

No seu sentido estrito, o educador popular tem uma origem, um local de nascimento, uma trajetória própria, em suma, uma história idiossincrática que lhe confere uma identidade singular que o distingue dos demais educadores. Ele nasceu no universo da Educação Popular em sentido estrito. Portanto, para conceituar o educador popular é necessário entender o que é a Educação Popular – que grafaremos com maiúsculas, por se tratar de modalidade específica de educação e de pedagogia, gerada em contexto também específico.

Muitas vezes, as expressões “Educação Popular”, “Educação de Adultos”, “Educação Não-formal” e “Educação Comunitária” são usadas como sinônimos por autores mais desavisados. Contudo, significam modalidades educacionais diferentes: “Educação de Adultos” e “Educação Não-formal” referem-se à mesma área disciplinar, teórica e prática da educação. A Educação de Adultos tem sido popularizada por organizações internacionais, como a UNESCO, para referir-se a uma área especializada da educação. A Educação Não-formal tem sido mais usada nos Estados Unidos, para referir-se à Educação de Adultos que se desenvolve nos países da periferia do Capitalismo, sendo geralmente vinculada a projetos de Educação Comunitária.

Não há mais dúvidas sobre ser a Educação Popular uma criação genuína da América Latina e, mais especificamente, do Brasil. Em outra obra, que escrevi com Moacir Gadotti, tratei mais detalhadamente do tema: “Como concepção da educação, a Educação Popular é uma das mais belas contribuições da América Latina ao pensamento pedagógico universal. Isso se deve, em grande parte, à atuação internacional de um dos seus mais importantes representantes: Paulo Freire. Ele deixou, por onde passou, as sementes de uma concepção popular emancipadora da educação. Essas sementes floresceram em numerosos grupos e organizações, nas últimas décadas, unindo conscientização e organização popular” (ROMÃO; GADOTTI, 2008, p. 5).

Inicialmente, os pedagogos inscritos no universo da Pedagogia Crítica – com um forte viés materialista-dialético – chamavam de “Educação Popular” a que faziam nos movimentos e nas organizações sociais, considerando a desenvolvida por outros educadores, especialmente pelos que trabalhavam no sistema formal de ensino, como “burguesa”, “não-popular” e, até mesmo, como “antipopular”. Como se pode perceber, não havia (e não há ainda) consenso quanto à concepção de Educação Popular, nem, muito menos, quanto à de “Educador Popular”.

No entanto, mesmo com a polissemia das expressões e com as verdadeiras dissensões internas, a Educação Popular, como prática educacional e como teoria pedagógica, disseminou-se por todos os continentes, quase sempre voltada para a defesa dos direitos e interesses populares e levada a cabo por educadores engajados na resistência às mais variadas formas de opressão.

No Brasil, a Educação Popular passou, nitidamente, por cinco fases: Popular Nacional-Desenvolvimentista (1954-1963); Popular da Resistência (1964-1985); Popular Ambígua (1986-1999); Eutanásia Pedagógica (1999-2002); Popular Cidadã (2003-2010).

Vejamos, ainda que sumariamente, cada uma dessas fases, para se compreender como a Educação Popular e, consequentemente, o Educador Popular foi ganhando conotações semânticas variadas, na medida em variaram os papéis e os objetivos dos sujeitos educacionais no seio de uma sociedade que passou por muitas transformações políticas, mantendo, no entanto, um sistema econômico iníquo e uma estratificação social injusta.

a)                  Popular Nacional-Desenvolvimentista (1950-1963): Essa fase durou mais de uma década e, na verdade, estendeu-se até os primeiros meses de 1964, sendo interrompida apenas pelo golpe militar desfechado em março desse mesmo ano. Corresponde ao período do Populismo Nacional-Desenvolvimentista dos governos de Getúlio Vargas (1950-1954), de Juscelino Kubitschek de Oliveira e, mais especificamente, ao de João Goulart (1961-1964).

Este último governo foi marcado por um forte desequilíbrio institucional, tendo o país passado pela renúncia do Presidente Jânio Quadros, pela experiência de um parlamentarismo artificial, ou “biônico”, como foi chamado à época, e pelo retorno ao Presidencialismo, por meio de um plebiscito. Foi na conjuntura das “reformas de base” da fase presidencialista do Governo de “Jango” (apelido popularmente afetivo atribuído ao Presidente da República) que se desenvolveu a Educação Popular Nacional-Desenvolvimentista, no seio da qual emergiu a revolucionária concepção freiriana de educação. Aliás, o Populismo Latino-Americano e Brasileiro, mais do que um estilo de governo, constituiu uma verdadeira categoria política, que se apresenta com uma contradição estrutural: ao possibilitar a emergência do povo na arena política, ele potencializa a verdadeira revolução, mas a contém com a liderança carismática dos líderes políticos. Em certo sentido, o Populismo representa uma ditadura incompleta e uma democracia mutilada. Ditadura incompleta, porque o líder populista necessita da base popular de sustentação política, uma vez que se distancia das elites. Suas pretensões personalistas são limitadas pelas concessões que tem de fazer às massas emergentes na política. Democracia mutilada, porque a participação popular na política se limita à legitimação das decisões tomadas na cúpula do governo populista. Assim, o Populismo se apresenta contraditório em sua própria estrutura e funcionamento, porque, se funcionar muito bem, corre o risco de ser superado pelo socialismo, na medida em que as massas de manobra se transformam em povo consciente de seu papel político; se não funciona, é destruído pelas elites das quais se afastou.

Na década de 1950, a Educação Popular emergiu no seio do Populismo Nacional-Desenvolvimentista e era entendida como “Educação de Base”, como desenvolvimento comunitário, genuinamente brasileiro. A luta contra o imperialismo e contra seus aliados incrustados na burguesia nacional carregou o discurso e as propostas da Educação Popular do tom do discurso nacional-desenvolvimentista. No final dessa década, a Educação Popular se bifurcou em várias tendências, dentre as quais se destacaram duas mais significativas: (i) a Revolucionária, desenvolvida por Paulo Freire, que concebia a educação como prática da liberdade – aliás, título de uma de suas primeiras obras –, como conscientização, como transformação mais profunda das estruturas econômico-sociais e políticas; (ii) a Integradora, formulada e implantada pelas correntes burguesas, que viam a educação das camadas pobres da população brasileira apenas como “educação funcional”, isto é, enquanto treinamento de mão de obra mais produtiva, útil ao projeto de desenvolvimento capitalista nacional. Além disso, os processos de alfabetização seriam fundamentais para a incorporação das massas no colégio eleitoral (na época, era proibido o voto dos analfabetos).

O Estado hesitava entre as duas tendências, implementando, por exemplo, o “Sistema S” (SENAI, SENAC, SENAR) e, ao mesmo tempo, convidando Paulo Freire para implantar seus círculos de cultura por todo o país. Enquanto o autor de Pedagogia do oprimido visava até mesmo à transformação da educação formal ministrada pelos sistemas escolares, a concepção Integradora objetivava a preservação do status quo, na medida em que preconizava a “inclusão” dos pobres no sistema de exploração capitalista vigente, com maiores rendimentos para o capital (profissionalização) e com menor resistência popular (alienação). Porém, por mais limitados que fossem os objetivos da alfabetização, mesmo que voltados apenas para a qualificação de eleitores, o Movimento de Educação Popular, iniciado no Nordeste Brasileiro, constituía uma real ameaça ao poder das oligarquias, na medida em que elas não teriam o controle absoluto dos votos. Para se ter uma ideia, o estado de Pernambuco, o mais populoso do Nordeste, teria seus 800.000 eleitores elevados para 1.300.000, na segunda metade da década de 1950. Além disso, “no quadro do Movimento de Educação Popular, os alunos formados nos círculos de cultura são mais exigentes que os líderes populistas, veem mais nitidamente a diferença entre as promessas feitas às massas e sua realização efetiva” (FREIRE, 1979, p. 20). Apenas nesses dois aspectos das iniciativas educacionais, dá para se perceber a fragilidade estrutural do populismo, no sentido de sua superação pelos próprios sujeitos que ele potencializou, ao buscar uma base social (popular) de sustentação política.  

b)                 Popular da Resistência (1964-1985): Desenvolvida, na maior parte das vezes, na clandestinidade, ou camuflada na oposição consentida pela ditadura militar que se implantou em 1964 e que se estendeu até meados da década de 80 do mesmo século, a Educação Popular Revolucionária, agora transformada em Educação Popular da Resistência, conviveu com sua contrafação, concebida pelos governos militares, por meio do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) e do Ensino Supletivo. O Mobral teve, por finalidade inicial, substituir os círculos de cultura, desenvolvendo uma alfabetização diametralmente oposta à conscientização proposta pelo Método Paulo Freire. E enquanto os textos do educador pernambucano só podiam ser lidos em edições clandestinas, a vertente conservadora da educação, voltada para as camadas populares, era entendida como “supletiva”, ora como compensação pela educação formal não cursada ou interrompida pelos filhos das camadas populares na idade própria, ora como preparação de mão de obra (Iniciação para o Trabalho e Qualificação Profissional). O “Suprimento”, que equivaleria, grosseiramente, à educação contínua, à educação ao longo da vida (Long Life Learning), apontada no discurso ditatorial como a mais importante, não saiu do papel para a prática.

Foi nesse período que nasceu a expressão “Educador Social”, que teve como berço a Pedagogia Social de Rua e que se constituiu como a melhor expressão do Educador Popular. E se a Educação Popular foi uma das grandes contribuições da América Latina à pedagogia universal, a Educação Social de Rua foi uma das mais significativas contribuições dos educadores de rua brasileiros à Educação e à Pedagogia Popular.

Na década de 1970, as “crianças e os jovens de rua” ganharam grande visibilidade enquanto fenômeno social. E o fenômeno não surgira do nada, mas era decorrência das políticas do Capitalismo Neoliberal pela submissão absoluta do trabalho à nova forma de acumulação capitalista, com todas as suas atrocidades: ajustes financeiros, com o sacrifício das políticas sociais e com o achatamento salarial, diminuição do papel redistributivo do Estado e seu avassalamento aos interesses da especulação financeira globalizada, sistema fiscal regressivo, terrorismo monetário, desemprego, etc. A deterioração do tecido social pela decomposição do trabalhador enquanto classe lançou nas ruas milhares de crianças e jovens, sem escola, sem emprego, sem teto, sem família, em suma, sem eira nem beira, expostos à execração pública e, quando muito, atendidos pela caridade dos programas assistencialistas. Foi aí que nasceu a Educação Social de Rua e a Pedagogia Social de Rua, do final da década de 1970, estendendo-se até meados de 1993, período que pode ser considerado como sua “época áurea” (OLIVEIRA, 2004, p. 57). De início, um pequeno grupo de intelectuais e cientistas sociais de procedências profissionais diversas, mas vinculados, direta ou indiretamente, à Pastoral do Menor, iniciou um trabalho no centro da cidade de São Paulo, mais especificamente na Praça da Sé, com os meninos(as) e adolescentes que ali se concentravam. As fontes referenciais desse grupo eram o legado de Paulo Freire e os pensadores da Pedagogia Marxista, como Makarenko, além de Emília Ferreiro e Céléstin Freinet.

A Educação em Meio Aberto, como ficou conhecida a Pedagogia Popular de Rua, condenou e superou a “Educação Correcional” que fora criada pelo Serviço de Assistência aos Menores (SAM), em 1941, e que ainda predominava no tratamento das populações infantis e adolescentes de rua, apesar de o Plano Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM) ter sido criado, em 1964, para superá-lo.

Na época, pesquisas permitiram a tipificação das populações aparentemente residentes nas ruas. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), foi possível distinguir as crianças e adolescentes “de rua” das crianças e adolescentes “na rua”. Estes últimos mantinham laços e referências familiares, o que permitia uma abordagem diferenciada pelos educadores populares.

Pode-se considerar o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (1984) e o chamado “Estatuto da Criança e do Adolescente” – resultante da regulamentação do artigo 227 da Constituição Federal (1988) pela Lei n.º 8.069 de 1990 – como verdadeiras conquistas da Pedagogia Social de Rua.   

c)                  Popular Ambígua (1986-1999): O período de 1986 a 1999 constituiu uma fase na qual se varreu, lentamente, os restos de autoritarismo para a lata de lixo da história. A partir do restabelecimento do Estado de Direito, que significou a redemocratização burguesa das instituições políticas, muitos resquícios da ditadura permaneceram em outros setores (social, econômico, cultural, educacional, etc.).

No campo específico da educação voltada para as classes trabalhadoras, houve uma espécie de fase de transição, em que a Educação Popular viveu uma situação de ambiguidade, pois o Supletivo, como verdadeiro para-sistema, continuou hegemônico na Educação de Adultos, às vezes, usando slogans e epígrafes da Pedagogia Revolucionária como estratégia de camuflagem. Ou seja, no período imediato à queda da ditadura, a Educação Popular institucionalizada e conservadora persistiu, ainda que sofrendo as investidas dos educadores verdadeiramente comprometidos com as causas populares, seja nas experiências localizadas e que não seguiam os modelos institucionais do Governo Federal, seja na exigência da participação do Brasil nas conferências internacionais que tratavam da modalidade (Jomtien, em 1991, China e Nova Délhi, em 1993, e V Confintea, realizada em Hamburgo, em 1997). Lograram algum êxito, na medida em que forçaram os hesitantes governos da “transição lenta e gradual” para o Estado Democrático a incorporarem os resultados das experiências exitosas locais e as pautas das declarações e dos planos de ação internacionais. Ao mesmo tempo, fustigavam as remanescentes políticas públicas conservadoras para o setor, que tinham sido formuladas e implantadas nos governos ditatoriais, como foi o caso dos programas da Fundação Educar, sucedânea do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral), e que se metera em todos os campos da Educação Popular, até mesmo no da Educação Infantil.

d)                 Eutanásia Pedagógica (1986-2002): De 1999 a 2002, pode-se dizer que a Educação Popular viveu a “Idade das Trevas”, porque ela quase desapareceu como política pública no Brasil, provocando forte impacto negativo nas iniciativas da sociedade civil organizada.

É que, contrário de todas as expectativas, o governo empossado em janeiro de 1999 encerrou esse período de transição, liquidando a Educação de Adultos sob o argumento de que a geração de analfabetos jovens e adultos contemporâneos deveria ser sacrificada, para que os investimentos se concentrassem na escola regular básica de crianças e adolescentes, já que aí estava a razão da longevidade do analfabetismo no país: o sistema formal de educação básica era o “celeiro do analfabetismo”, conforme justificavam os defensores dessa verdadeira “eutanásia pedagógica”. A maioria dos sistemas estaduais e municipais inibiu os programas de educação de jovens e adultos que se realizavam fora das escolas, provocando uma forte retração das políticas, planos, programas e projetos de Educação Popular que, a despeito das iniciativas da sociedade civil organizada, dependia financeiramente do apoio público. Até mesmo a Comissão Nacional de Educação de Jovens e Adultos foi extinta nessa época. O recuo do governo federal em qualquer política social, mormente educacional, inibe políticas, planos e projetos congêneres nas unidades da Federação. Não seria exagerado dizer que, em pleno Estado de Direito, a Educação Popular viveu um momento pior do que aquele que vivera durante os vinte e um anos de ditadura.

Algumas iniciativas localizadas, como a de Paulo Freire na administração da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, com o “Mova São Paulo”, mantiveram a chama viva. Essa experiência teve eco no Rio Grande do Sul e em outros estados e municípios que resistiam à onda neoliberal que varria o país.  

e)                  Educação Popular Cidadã (2003-2010): A partir de 2003, renovaram-se as esperanças dos educadores populares, porque tomava posse um governo cujo partido se caracterizara, em toda sua história, como comprometido com as lutas dos trabalhadores.

Ainda na fase da Educação Popular Ambígua (1986-1999), a Educação Popular foi incorporando outras ideias, permitindo uma maior flexibilidade na classificação dos desempenhos docentes populares. Nesse aspecto, Celso de Rui Beisiegel, nas suas aulas na Pós-Graduação em Educação, na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, deu uma grande contribuição, conceituando a Educação Popular como toda e qualquer educação – privada ou pública, ministrada ou não pelo sistema escolar – dirigida às camadas populares, no intuito de socializar o processo civilizatório. Esse autor considerou a possibilidade de uma escola pública popular, mesmo no contexto do Capitalismo e da Sociedade Burguesa. Em suma, a Educação Popular ganhava o qualificativo “popular” pelo seu destino e, não, pela ideologia de seus formuladores, ministradores e provedores. É evidente que se tratava, também, de uma educação não “bancária”, mas conscientizadora e emancipadora, no sentido que Paulo Freire conferira a esses termos em Pedagogia do oprimido (1978). De qualquer forma, ela não deixava de ser popular se fosse incorporada nas políticas governamentais e o novo governo federal precisava ter à mão uma proposta de Educação Popular para implementá-la, inclusive, no sistema formal de educação.

O “Educador Popular”, então, seria todo educador, profissional da educação ou não, trabalhando no sistema formal de ensino, ou nos movimentos sociais e nas organizações não-governamentais, mas sempre voltado para os interesses econômicos, políticos, sociais e culturais das camadas populares da sociedade.

Mesmo com a contribuição de Celso, a expressão continuou com uma forte conotação antiestatal e contrária ao sistema regular de ensino, ou seja, tendia a permanecer adstrita aos educadores que desenvolviam seus trabalhos junto aos movimentos, organizações e instituições populares não-governamentais. Nesse caso, seria, talvez, mais correto denominar o educador que atua nessas circunstâncias como “Educador Social” – designação nascida no Brasil, nos anos 70 do século passado, quando se desenvolveu a chamada “Educação Social de Rua”, ou, como ficou mais conhecida, “Pedagogia Social de Rua”, já explicada neste verbete.

Também foi na fase da Educação Popular Ambígua que se formulou o Projeto da Escola Cidadã pelo Instituto Paulo Freire, como uma alternativa ao projeto escolar burguês neoliberal que já se esboçava. O “projeto” apresentava-se com uma natureza diferente dos projetos tradicionais. Ele não era uma proposta, mas uma constatação, a partir dos referenciais freirianos, da existência de “Escolas Cidadãs” no Brasil. Os autores do projeto (Moacir Gadotti e José Eustáquio Romão) saíram pelo país, levantando sistemas ou unidades escolares que correspondessem a uma escola pública cidadã. Identificaram várias dessas escolas. O que permitia identificá-las como tais eram três elementos: elas eram estatais quanto ao financiamento, comunitárias (democráticas) quanto à gestão e públicas quanto à destinação.

Como se pode observar, o Projeto da Educação Cidadã voltou-se, inicialmente, para as formas de gestão escolar, sem debruçar-se sobre as questões curriculares. O movimento em direção à discussão dessas questões seria feito na primeira década do século XXI e, nesse momento, ficaria cada vez mais claro o compromisso da Educação Cidadã com a Educação Popular, como projeto de resistência ao projeto educacional neoliberal (ROMÃO, 2000).

Embora o conceito de cidadania tenha nascido, modernamente, na Revolução Francesa (1789-1799) e tenha se limitado à igualdade formal política, portanto, restrita aos limites da igualdade burguesa, ela foi se transformando em uma bandeira das classes sociais subalternizadas. A cidadania, qualificada pelos adjetivos “multicultural” (respeito às identidades culturais), “ativa” (participação no processo de tomada de decisões), “sustentável” (preservação dos ecossistemas e de sua reprodução), “equitativa” (igualdade econômica e social) e “gnosiológica” (democracia cognitiva), acabou por se tornar a utopia possível da luta dos educadores populares, na medida em que eles passaram a defender a extensão da democracia política à economia, à sociedade e à cultura, para efetivamente merecer esse nome.

Do ponto de vista da pedagogia freiriana, há um aspecto da democracia cognitiva que não pode ser esquecido e é ele que confere um caráter popular à ciência e à própria epistemologia (teoria da ciência): há de se incorporar no currículo (entendido em seu sentido amplo) os traços culturais da visão de mundo dos oprimidos e das oprimidas. É Pedagogia “do(a)” Oprimido(a) e não a Pedagogia “para” o Oprimido. Ou seja, é a pedagogia a partir do olhar, da perspectiva, do viés, dos oprimidos e das oprimidas. E não se trata de concessão “basista”, nem de mera simpatia ou compaixão para com os(as) subalternizados(as), mas de verdadeira clarividência epistemológica. Paulo Freire entendia que há uma vantagem gnosiológica e epistemológica dos(as) oprimidos(as), na medida em que eles e elas vivem no olho do furacão das contradições e, por isso, aspiram à transformação social.

Se tudo muda, se tudo está em transformação, se nada permanece, mas o que permanece é a mudança, somente os oprimidos e as oprimidas fazem as mudanças estruturais na história. Entretanto, não quer dizer que as fazem sempre. Aliás, na maioria das vezes, não as fazem, porque leem o mundo com os olhos de seus opressores e opressoras. Fazem a transformação social e, no limite, a revolução, quando se livram do olhar, das lentes opressoras, isto é, quando se conscientizam e se libertam da alienação, que é ler o mundo com os olhos de outrem, passando a lê-lo com as próprias categorias de oprimido(a). Em resumo, a Educação Popular, na perspectiva freiriana, constituir-se-ia em dois níveis, com desdobramentos em vários âmbitos:

I – Nível Institucional

a) No Financiamento – Ela tem de ser estatal, na medida em que a educação é um direito de todos e, por isso, tem de ser provida pelos poderes públicos.

b) Na Gestão – Ela tem de ser comunitária, ou seja, os sujeitos do processo decisório são os próprios protagonistas da mediação pedagógica. 

c) Na Destinação – Ela tem de ser pública, ou seja, voltada para os interesses da maioria da população e, não, por qualquer que seja o mecanismo de seletividade, constituir o privilégio de uma minoria.

II – Nível Curricular

a) Na Metodologia – Nesse âmbito, partindo da premissa de que “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo [e que] os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1978, p. 79), a didática esvazia-se de sentido e deve, progressivamente, ser substituída pela mediação pedagógica, que Paulo Freire chamou de “mediatização”, para não confundi-la com a mediação em sentido de intermediação de “ponte”, mas de identificá-la com a mediação dialética: superação do conhecimento imediato pelo mediato.

b) No Conteúdo – Aqui, a proposta mais radical da pedagogia freiriana se apresenta: para que uma educação seja efetivamente popular, há que se incorporar os processos de conhecimento popular – sem populismo nem basismo –, no sentido de explicitar a ciência contida naqueles processos e que não é percebida nem por seus próprios sujeitos.

Como se pode perceber, na perspectiva freiriana, a Educação Popular apresenta uma série de implicações que, uma vez atendidas, caracterizam-na como tal, mesmo que ela seja desenvolvida no interior dos sistemas formais e regulares de educação.

A Educação Popular já conta com uma história muito rica, na qual estão envolvidos numerosos educadores, inúmeros movimentos sociais e populares, sem falar no próprio Estado. Ela está ligada a todo um movimento que busca, por um lado, a extensão da educação formal para todos e, por outro, a formação social, política e profissional, sobretudo, de jovens e de adultos excluídos da escola regular na idade própria. Em suma, ela justifica seu nome pelo comprometimento com a luta pela universalização do banquete civilizatório.

O educador popular é, então, aquele que tem por fim a realização dessa Educação, onde quer que desenvolva seu trabalho e sob quaisquer condições.

Bibliografia

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BRASIL. Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 16 jul. 1990.

FREIRE, P. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. São Paulo: Cortez & Moraes, 1979.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 6. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

OLIVEIRA, W. F. Educação social de rua: As bases políticas e pedagógicas para uma educação popular. Porto Alegre: Artmed, 2004.

ROMÃO, J. E. Dialética da diferença:o projeto da escola cidadã contra ao projeto pedagógico neoliberal. São Paulo: Cortez, 2000.

ROMÃO, J. E.; GADOTTI, M. Educação de adultos: cenários, perspectivas e formação do educador. Brasília: Liber Livro, 2007.