FAMÍLIA (RELAÇÃO FAMÍLIA-ESCOLA)
A expressão relação família-escola abrange os múltiplos aspectos envolvidos na interação entre essas duas instituições. Tanto no âmbito estritamente acadêmico quanto no campo pedagógico e das políticas públicas, há um reconhecimento cada vez mais claro de que os alunos não são indivíduos isolados, que possam ser considerados de modo universal, como se fossem todos iguais. Cada aluno faz parte de um grupo familiar específico, com características demográficas, socioeconômicas, culturais, étnicas e raciais particulares. Essas características familiares interferem direta ou indiretamente no modo como cada aluno lida com sua escolarização e constrói sua trajetória no interior do sistema escolar. Assim, tanto para se compreender cientificamente os processos de escolarização de indivíduos ou de grupos sociais quanto para se intervir pedagógica e politicamente nesses processos, é fundamental compreender as múltiplas dimensões da relação família-escola.
No campo da Sociologia da Educação, a reflexão sobre o papel da família nos processos de escolarização inicia-se nos anos 1960, a partir da interpretação teórica de uma série de pesquisas quantitativas que vinham apontando o peso da origem social sobre o desempenho e as trajetórias escolares. Nesse contexto, Bourdieu (1964, 1998) chama atenção para o fato de que as famílias possuem recursos diferenciados para investir na escolarização dos filhos. O autor destaca a importância do capital cultural como elemento favorecedor do sucesso escolar. As referências culturais, os conhecimentos considerados legítimos e o domínio maior ou menor da língua culta herdados por certas crianças facilitariam o aprendizado e propiciariam melhor desempenho nos processos escolares de avaliação, na medida em que funcionariam como uma ponte entre o mundo familiar e a cultura escolar. Bourdieu observa ainda que a escolarização faz parte das estratégias familiares de reprodução da posição social. Quanto maior o peso do capital cultural no conjunto do patrimônio de um grupo familiar e, portanto, quanto maior a importância desse capital na definição da posição social atual e futura do grupo em questão, maiores tenderiam a ser os níveis de expectativa e de investimento na escolarização dos filhos. Assim, as famílias dos meios populares tenderiam a investir moderadamente na escolarização dos filhos por, de alguma forma, perceberem que as chances de sucessos escolar e de mobilidade social por meio da escola são pequenas, dada a ausência do capital cultural. Em função de seu baixo capital econômico, essas famílias também são premidas pela necessidade de inserirem logo seus filhos no mercado de trabalho, em detrimento da possibilidade de construírem trajetórias escolares mais longas. As famílias das classes médias, ao contrário, especialmente aquelas cuja posição social atual se define basicamente em função dos títulos escolares, tenderiam a investir pesada e sistematicamente na escolarização dos filhos. Em função de já terem algum capital cultural, essas famílias veriam o sucesso no sistema de ensino como algo perfeitamente possível, além de acreditarem que a escolarização é a melhor estratégia para garantir aos seus filhos posição social igual ou superior à que ocupam atualmente. Finalmente, em relação às elites, é preciso distinguir aquelas frações mais ricas em capital cultural daquelas cujo patrimônio é principalmente econômico. As primeiras seriam propensas a um investimento escolar mais intenso, visando o acesso às carreiras mais longas e prestigiosas do sistema de ensino. Já as frações mais ricas em capital econômico tenderiam a buscar na escola, principalmente, uma certificação que legitimaria o acesso às posições de controle já garantidas pelo capital econômico.
As análises produzidas nas décadas de 1960 e 1970, entre as quais a de Bourdieu, foram criticadas a partir dos anos 1980, em função de seu caráter estritamente macrossociológico e, em alguma medida, determinista. Como diz Terrail (1997), operou-se até os anos 1970 uma abstração paradoxal das famílias. Ao mesmo tempo em que estas estavam no centro da explicação das desigualdades escolares, elas não eram investigadas em si mesmas, suas características e comportamentos eram basicamente deduzidos da posição que ocupavam na estrutura social. Contrapondo-se a essa perspectiva, as pesquisas desenvolvidas a partir dos anos 80 investigam as famílias e sua relação com a escola de forma cada vez mais detalhada (MONTANDON, 1996; NOGUEIRA; ROMANELLI; ZAGO, 2000; LAHIRE, 1997). Analisa-se o modo como as famílias escolhem e interagem com a escola dos filhos, as maneiras como monitoram os deveres de casa e eventualmente promovem atividades extras e paraescolares, as reações diante do fracasso escolar, etc. Servindo-se mais de métodos qualitativos, passa-se a estudar como as características, os modos de interação, as práticas cotidianas e as dinâmicas históricas de famílias concretas repercutem em sua relação com a escolarização dos filhos. Um dos temas centrais de pesquisa passa a ser o do sucesso escolar nos meios populares. Investiga-se como diferenças secundárias entre famílias de um mesmo meio social podem favorecer ou dificultar o sucesso e a longevidade escolar dos alunos.
Se, por um lado, essas novas abordagens rompem com o determinismo presente nas pesquisas anteriores, ao acentuarem que as famílias não se reduzem à sua posição de classe, por outro, elas continuam a evidenciar o papel central ocupado pela família ao longo de todo o processo de escolarização. É em parte com base nessas evidências que têm se multiplicado as iniciativas de estímulo a uma maior participação dos pais nos processos de escolarização. No mundo inteiro, têm sido criadas campanhas, projetos e mesmo cursos de preparação dos pais, visando intensificar e aprimorar a interação destes com a escola e a escolarização dos filhos.
Os pesquisadores têm demonstrado, no entanto, os limites e as dificuldades enfrentados por essas iniciativas de aproximação. Da parte dos pais, há, em muitos momentos, uma resistência às tentativas das escolas de interferirem nos seus modos habituais de agir e pensar sobre os filhos. Da parte dos educadores, por sua vez, cobra-se maior participação dos pais, desde que isso não signifique uma ingerência excessiva no cotidiano escolar e uma ameaça à autoridade pedagógica dos professores. Diante disso, a relação família-escola tem sido caracterizada por muitos pesquisadores como tensa, contraditória, armadilhada (SILVA, 2003).
Cabe ainda ressaltar que não existem evidências conclusivas de que um aumento pontual no acompanhamento dos deveres escolares ou nas visitas à escola dos filhos por parte dos pais possa representar mudança substantiva no desempenho ou trajetória escolar dos alunos. As famílias influenciam a escolarização de seus filhos por meio de múltiplos e, em grande medida, imperceptíveis processos cotidianos de socialização, processos esses sobre os quais os educadores e as políticas públicas têm pouca capacidade de interferência.