REFORMA EDUCACIONAL NA AMÉRICA LATINA

Autores/as: NORA RUT KRAWCZYK

Reforma sistêmica da educação, implementada nos diferentes países da região, durante a década de 1990, que implicou mudanças importantes nos modos de organização e gestão dos sistemas educativos e das escolas, nas formas de financiamento, na organização do trabalho escolar e no conjunto de princípios e valores que orientam a educação.

Teve como antecedentes compromissos assumidos pelos governos nacionais na Conferência Mundial de Educação para Todos, realizada em Jomtien (Tailândia), no início dessa década. Segundo o diagnóstico dos organismos internacionais, tais compromissos eram necessários para adequar as realidades educacionais nacionais aos condicionantes da reestruturação do setor produtivo e às mudanças institucionais que alteram a estrutura do Estado e das relações sociais no âmbito de uma nova ordem mundial. A reforma educacional na região tornou-se necessária sob o pressuposto, defendido pela UNESCO, de que ela daria aos diferentes países condições para enfrentar com equidade os desafios de uma nova ordem econômica mundial (CEPAL, 1992).As mudanças propostas pelos organismos internacionais para a educação na América Latina foram elaboradas sob a égide de políticas econômicas neoliberais e de uma forte crítica às funções dos Estados Nacionais e à lógica de gestão pública do modelo de desenvolvimento keynesiano; crítica essa decorrente da crise do processo de acumulação capitalista (KRAWCZYK, 2000).

A possibilidade de uma reforma educacional continha expectativas distintas no interior dos países da região, gerando embates que mobilizaram diferentes segmentos sociais, políticos e econômicos, num longo processo de negociação, até o início da década de 1990, quando se observou a centralização das decisões político-educacionais no âmbito governamental, restringindo-se suas negociações a alguns setores nacionais e internacionais sem participação orgânica da sociedade (TIRAMONTI, 2001). Essa dinâmica não é originária da década de 1990 — ela marcou o processo de modernização nos países latino-americanos (FERNANDES, 1981).

Implantou-se a descentralização da gestão do sistema educacional, que teve em comum um objetivo financeiro vinculado à crise fiscal dos governos nacionais; esta se manifestou em um novo cenário de distribuição de responsabilidades e de dinâmicas de negociação, diminuindo a responsabilidade do Estado pela educação, paralelamente a um processo de centralização do poder de decisão e de controle nos governos nacionais (WEILER, 1996). O princípio de descentralização não esteve associado necessariamente a uma forma de organização político-territorial (unitária ou federativa), nem restrito a uma nova distribuição de responsabilidades e atribuições entre as diferentes instâncias governamentais (nacional, provincial/estadual e municipal). Além disso, nos países federalistas, esse processo ocorreu de maneira distinta, conforme a sua dinâmica política. A descentralização referencia também a perda de sentido da exclusividade do Estado como provedor da educação pública e a incorporação, na gestão da escola pública, da iniciativa privada, seja como forma de complementação do orçamento das unidades escolares, seja como meio de valoração de seu saber para a gestão institucional. Ficam reservadas ao Estado as funções de coordenação e regulamentação e a implementação de políticas compensatórias, visando diminuir as desigualdades. O impacto das políticas econômicas — mais excludentes, que acentuaram as desigualdades — implantadas na região durante a década de 1990 induziu a uma ênfase nas políticas compensatórias, que passaram a ocupar um lugar importante nas estratégias de contenção de conflitos sociais (KRAWCZYK; VIEIRA, 2008).

Promoveram-se mudanças substanciais na gestão do âmbito escolar, sem uma reflexão pedagógica. A autonomia das instituições e a participação dos diferentes segmentos sociais no âmbito local e, principalmente, no gerenciamento das unidades escolares consolidaram um novo teor da participação pela corresponsabilização dos indivíduos no provimento e na qualidade da educação escolar. A autonomia escolar é um conceito bastante comum, tanto no discurso oficial quanto no interior das escolas. Porém, ela ficou reduzida à capacidade de administrar os problemas e captar os recursos necessários. Ao lado disso, empreendeu-se a mobilização da comunidade para ajudar as escolas a enfrentar tais questões. Tais preceitos coadunam-se com as estratégias de participação e corresponsabilização contidas no modelo de Gestão de Qualidade Total

(KRAWCZYK; VIEIRA, 2008). 

O discurso participativo produziu dois fenômenos comuns na região que afetaram a dinâmica escolar. Por um lado, ocorreu a burocratização do cotidiano escolar e a formalização da participação nas instâncias colegiadas, aumentando a atividade administrativa, as demandas das famílias e provocando uma mudança do perfil do trabalho escolar. Ao mesmo tempo, fortaleceu-se a figura do diretor como gestor, distanciando-o das atividades pedagógicas, e desestruturou-se a capacidade de coesão da equipe docente das escolas. O aumento das responsabilidades das instituições escolares e das famílias na gestão financeira da instituição e nas estratégias de resolução dos problemas educacionais produziu um ativismo institucional e uma relação de competitividade entre as escolas, devido à necessidade de elaboração constante de projetos e de contatos e parcerias com a comunidade para concorrer a novos recursos governamentais e privados.   A nova dinâmica estabelecida colocou as instituições com menos recursos – materiais, humanos e institucionais – em piores condições para elaborar projetos de qualidade, tendo decorrido disso uma maior atomização das instituições escolares e, consequentemente, a ampliação das desigualdades educacionais (KRAWCZYK; VIEIRA, 2008).

As políticas educacionais da década de 90 do século XX acabaram sendo, de fato, fortemente direcionadas na definição tanto de suas prioridades quanto de suas estratégias, pela crescente liderança do Banco Mundial no desenho e na execução da Reforma nos países em desenvolvimento. No entanto, ainda que originalmente tenha havido a intenção de definir uma “agenda” para a região, a concretização das políticas educacionais resultou muito mais complexa porque estas incorporaram as tensões, os conflitos e as situações nacionais e acabaram tendo impactos diferentes, conforme as condições objetivas de cada país.

Bibliografia

CEPAL. Educación y conocimiento: eje de la transformación productiva com equidad.Santiago de Chile: Naciones Unidas, 1992.

FERNANDES, F. Poder e contra-poder na América Latina. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

KRAWCZYK, N. R. A construção social das políticas educacionais no Brasil e na América Latina. In: KRAWCZYK, N. R.; CAMPO, M. M.; HADDAD, S. (Org.). O cenário educacional latino-americano no limiar do século XXI: reformas em debate. Campinas: Autores Associados, 2000. p.1-11.

KRAWCZYK, N. R.; VIEIRA, V. L. A reforma educacional na América Latina nos anos 1990:uma perspectiva histórico-sociológica. São Paulo: Xamã, 2008.

TIRAMONTI, G. Modernización educativa de los ’90:el fin de la ilusión emancipadora?. Buenos Aires: Temas Grupo Editorial, 2001.

WEILER, H. N. Enfoques comparados en descentralización educativa. In: PEREYRA, M. et al. (Comp.). Globalización y descentralización de los sistemas educativos:fundamentos para un nuevo programa de la educación comparada. Barcelona: Pomares-Corredor, 1996. p.208-233.